Duas Irmãs e um Duque correspondeu à nossa estreia com a autora Eloisa James, e foi uma agradável surpresa descobrir mais uma variante na ficção histórica ou de época, com cenário na Inglaterra do Século XIX, sendo este assumidamente um dos nossos géneros literários de eleição
A narrativa tem início em Março de 1812, em Mayfair, Londres, na residência da família Lytton, uma família abastada, aparentada com a aristocracia, mas destituída de título nobiliárquico, e que investiu grande parte dos respectivos recursos financeiros na "Duquesificação" [termo usado pela autora no romance, e que achámos verdadeiramente genial] das duas filhas gémeas - Olivia e Georgiana Mayfield Lytton.
As Gémeas, bastante cúmplices entre si, foram criadas com o intuito de serem o exemplo máximo da virtude, educação, contenção emocional e cumprimento rigoroso dos preceitos sociais bastante rígidos da aristocracia Britânica, sendo ambicionada claramente uma ascensão na escala social.
Olívia, a irmã mais velha (alguns minutos), está prometida desde tenra idade ao herdeiro do Duque de Canterwick - Rupert Forrest G. Blakemore - um rapaz mais jovem do que Olívia e que apresenta uma perturbação ao nível intelectual, pese embora seja uma alma sensível e doce, porém, muito simples e incapaz de raciocínios mais elaborados. O pai de Olívia foi colega de estudos e é amigo do Duque de Canterwick, e ambos fizeram um pacto de fazer casar um das filhas de Mr. Lytton com o herdeiro do Duque.
Georgiana, a irmã mais nova, receberá um dote, após o casamento da irmã, que lhe permitirá, posteriormente ser elegível para ascender também na escala social, contraindo matrimónio.
As duas irmãs são o oposto uma da outra. Olívia, a futura Duquesa, é divertida, pouco dada a cumprir à risca as apertadas regras sociais que a mãe ensinou, assumindo uma postura mais informal (excessivamente para os preceitos da época), expressando emoções, e preferindo brincar com rimas, trocadilhos e poemas alguns até algo brejeiros, sendo bastante sarcástica e crítica em relação à aristocracia sua contemporânea, o que causa desgosto à sua severa e ambiciosa mãe. A mãe da jovem chega mesmo a criticar a figura mais redonda da mesma, levando a filha a sentir-se por vezes desanimada e com a auto-estima algo abalada pelo facto de ter curvas e a sua estrutura corporal não ser considerada a mais desejada para os padrões da época, que evidenciavam a extrema magreza com ideal de beleza para as damas da alta sociedade. Olivia é dona de uma personalidade bem vincada e é bastante efusiva e brincalhona.
Por sua vez, Georgiana Lytton, é, ironicamente, uma jovem que apresenta a personalidade contida em público, e interiorizou na perfeição os ensinamentos dados pela mãe, estando, de longe, mais apta a assumir a posição de Duquesa, por comparação com a mais extravagante irmã. Também a figura da jovem, em termos físicos, é consentânea com o ideal de beleza defendido.
As jovens são cúmplices, trocam confidências e desabafos entre si, e têm uma boa relação, apesar de todas as diferenças que as caracterizam.
Subitamente, o prometido de Olivia decide partir para a Guerra com a França, para alcançar honra militar antes que ambos se casem, o que vem adiar ou até mesmo, quem sabe, deitar por terra os planos de casamento e a "Duquesificação" de Olivia, pois existe o sério risco de Rupert não sobreviver.
Georgiana é convidada para passar alguns dias em Littlebourne, em Kent, a residência do viúvo Duque de Sconce - Tarquin Brook-Chatfield - onde será submetida a alguns testes de conduta social, para aferir da sua elegibilidade para ser a segunda esposa do Duque, tendo de passar pelo apertado crivo da avaliação dura de Amaryllis - a mãe do Duque. Assim, Georgiana parte para a residência do Duque de Sconce, na companhia da irmã Olivia, e de uma tia do Duque - Lady Cecilia.
E estão lançados os dados para uma série de deliciosos diálogos, entre os convivas, o Duque e as duas irmãs.
Quin - Duque de Sconce, é um homem marcado pelo passado, por alguns eventos trágicos, e pela crença errada, incutida pela mãe, de que o amor é algo negativo e destrutivo. É contido, rígido, mas irá evoluir e mostrar o carácter apaixonado e reconciliar-se com o passado e consigo próprio.
Uma personagem também habilmente construída é Rupert, o herdeiro do Duque de Canterwick, que vai surpreender os leitores, e que é inspirada numa fascinante personagem do cinema contemporâneo.
O ritmo narrativo, inicialmente algo mais rotineiro, quando a acção decorre na residência da família Lytton, começa a acelerar quando o cenário social e espacial muda para a residência de Quin - Duque de Sconce.
Uma das características mais bem conseguidas, originais e especiais deste romance são as inúmeras graças, trocadilhos e poemas, com tiradas verdadeiramente hilariantes, muitas vezes da parte de Olivia, secundada por um primo do Duque - Justin - filho de mãe Francesa, também ele mais exuberante socialmente. Estes trocadilhos, segundos sentidos e humor evidente, redundam também, quase sempre, numa mordaz crítica social aos maneirismos da época, à excessiva rigidez, e à frieza e hipocrisia que caracterizavam a vivência das classes mais altas da sociedade, onde o parecer deveria muitas vezes suplantar o ser, em nome de uma apregoada dignidade que era mesmo artificialmente construída. E aqui o livro pode sempre ter duas leituras, o humor que nos diverte, e o foco na crítica social que nos faz pensar criticamente.
As personagens estão muito bem elaboradas, são densas ao nível psicológico, e é evidente a arte de Eloisa James ao brincar com as palavras, e o quão bem a autora se sai deste desafio literário.
A história corresponde a um reconto do clássico conto de Hans Christian Andersen "A Princesa e a Ervilha", mas existem inúmeras outras inspirações literárias, cuja explicitação a autora resume numa nota final que adicionou ao romance, e que mais ainda nos faz aumentar a admiração pelo trabalho desenvolvido.
Também não ficam de fora momentos de tensão, aventura e perigo, e um muito inesperado twist final.
Uma brilhante mistura de humor, amor, sensualidade, sátira social, cultura literária clássica (a servir de mote e inspiração) e cultura cinematográfica contemporânea (a inspirar uma personagem em especial) mas respeitando sempre os detalhes históricos do tempo da narrativa.
Estamos perante uma leitura agradável, divertida e inteligente! Mais uma autora de excelência, e que sabe conferir um estilo muito pessoal à sua escrita.
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Artigo publicado ao abrigo de parceria com
Diário do Distrito e
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