Texto e Fotos : Fernanda Palmeira
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Num primeiro impacto visual uma nuvem da cor do fogo, um denso capacete de fumo, quase palpável. Visibilidade a média distância quase nula. O cenário habitual de qualquer incêndio ativo. Uma experiência, uma vez mais, repetida.
Paramos para fotografar um foco ativo, logo ali, a poucos metros, e tomar algumas notas, com o alerta veemente de zona de risco e o pedido de curta permanência.
No caminho poucas são as árvores que sobreviveram ao fogo, há casas e barracos queimados, mas muitos resistiram de forma inexplicável e estão intactos no meio da destruição.
À medida que avançamos algo de diferente, a cada 5, 10 metros, um carro, um camião, uma alfaia agrícola, completamente queimados. Um verdadeiro cenário de catástrofe.
Placas toponímicas quase irreconhecíveis. Não fosse dar-se o caso de conhecer as localidades e não saberia onde estávamos. Chegamos à primeira aldeia e parece que o fogo resolveu dar tréguas à sua porta. Um carro completamente destruído quase se cola às casas intactas. As gentes estão na rua, ainda incrédulas.
Quando abrimos a porta do nosso carro o impacto do calor e, sobretudo, o ar denso e quase irrespirável, e o cheiro, o intenso cheiro a fumo que se entranha pelas narinas e se cola à pele, ao cabelo, à roupa, e que há-de perdurar muito para além do espaço. Colado à memória olfativa.
O olhar perde-se na destruição, instala-se um peso no peito, árvores, carros, histórias de mortes mesmo ao nosso lado, de alguém que ficou ali. Mostram-nos os locais onde alguém foi encontrado, no chão, no carro. O peso das histórias a gravar-se na nossa mente, no nosso coração, para sempre na nossa memória. Os rostos contraídos de quem nos fala, o semblante carregado.
E, no meio de tudo, e apesar de tudo, e, num rasgo de puro egoísmo, um sobressalto no meu coração ao ver um primo e depois outro. Sobreviventes, todos. E algum sentimento de culpa, um porquê o outro e não eu… um porquê outras famílias e não a minha. E a consciência de ter uma família fortemente implantada na região que passou incólume pela catástrofe.
Perdas materiais e animais, não há quem as não tenha. Desvalorizadas, todas, por cruel que possa ser, porque afinal, entre parentes e amigos se perdeu, para sempre, alguém.
Seguimos rumo aos sobreviventes, são essas as histórias que queremos ouvir. Gente resiliente que se há-de reerguer como fénix. É essa a grande diferença que sinto e vivencio ao acompanhar jornalistas de outras latitudes.
Prosseguimos por entre o ambiente espesso que nos rodeia com alma de jornalista, em busca do facto, recalcando as emoções. É por isso e para isso que lá estamos. É essa a frieza que nos é exigida. O distanciamento possível. Entre árvores queimadas, carros, casas, no verdadeiro inferno.
No caminho muitos rostos se cruzam com os nossos já sem curiosidade perante estranhos, afinal são, neste momento, mais os forasteiros jornalistas que os habitantes, numa proporção nunca vista. O atropelo entre pares, a visão necrófila, a devassa, é algo que não move a equipa em que me integro. Agradeço.
Já vivi esta história neste local e mais a sul, não com esta gravidade, única, espero irrepetível, mas já estive frente a frente com o fogo mais de uma vez, num medir de forças desigual, e também eu fugi, exatamente do mesmo modo que os que desta vez foram por ele cercados. Porquê eles e não eu será sempre algo para que não terei resposta.
O meu agradecimento vai inteiro para o Dagen Nyheter porque o “bicho” jornalista é imortal, porque ir à terra onde está o meu cordão umbilical neste momento era vital, porque saber/ver dos ‘meus’ era essencial.
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Nota de redacção: Fernanda Palmeira é Licenciada em Comunicação Social pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, foi Jornalista e trabalhou em Assessoria de Imprensa. Leitora ávida, encontra-se associada a projectos de divulgação Literária de que é exemplo a Roda dos Livros e integrará, de ora em diante, a equipa de colaboradores do Jornal Nova Gazeta, como colunista. A crónica que hoje publicamos foi originalmente publicada pela autora no seu blogue pessoal Ir à Lua e Voltar sob o título " Crónica de Uma Ida ao Hades".
Esta publicação é feita em sentida homenagem às vítimas da Tragédia de Pedrógão Grande, e ninguèm melhor para lhes dar vós do que uma conterrânea.
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