Desistir de desistir. (A todas as mães que não desistem.)
Tenho algumas amigas que são pais e mães de pequenas crianças
ou jovens adolescentes. Uma delas, que carrega sobre os ombros o pesadíssimo e
solitário mundo do “tudo eu”, pediu-me há uns dias: “Deixo-te o mote: «Há
filhos orfãos de pais vivos». Sei que vai sair daí um texto com tudo o que eu
gostava de escrever mas que não consigo.”
Eu própria sou mãe de um jovem adulto e uma adolescente
(quase, quase jovem adulta), e faço sozinha, desde há vários anos, o que posso
e tantas vezes o que não posso para que eles sintam em todos os dias das suas
vidas que eu estou cá para eles. Que eu não desisti deles.
E isso pode ser um paradoxo, porque não desistir deles,
levou-me muitas vezes a desistir de mim.
Quem é que não faz a menor ideia do preço que uma mãe paga para
criar os seus filhos sozinha? O pai. O pai que desistiu. O pai que não quis
saber. O pai que aproveitou todas as vantagens de não ter que se preocupar com
outras vidas dependentes da sua, e recomeça, absolutamente egoísta mas também
absolutamente livre.
Posso contar-vos uma história:
Era uma vez uma jovem mulher que se cansou de viver ao lado
de uma pedra. Um dia, depois de muito tempo a tomar copos de vermute na varanda
e a ouvir Andréa Boccelli, ganhou coragem para fazer cair o pano da peça de
teatro em que era personagem secundária. Caiu o pano. Olhou os adereços.
Estavam feios e gastos. Pegou no guião, rasgou-o e reescreveu a sua história.
Uma mulher, duas crianças, as suas roupas e uma cadela que se
chamava Maria, (tinha o pêlo cinzento encaracolado e os olhos mais doces do
mundo).
Trocou o inferno do luxo de uma vivenda construída a gosto
por um apartamento exíguo e velho. Levou com ela tudo o que lhe era importante
e deixou para ele as coisas que não têm importância nenhuma mas que ainda
assim, ele defendeu como uma loba que protege as crias: A casa, os móveis, os
electrodomésticos, os cortinados rocócó que ela sempre detestou, o ouro que lhe
fora dado pela mãe e que ele achou por bem esconder para que ela não pudesse
levá-lo. É quase a cantiga da Ágatha: “Podes ficar com as jóias, o carro e a
casa…”Ele ficou. E nem tentou ficar com eles.
Hoje ela nem conta pelos dedos as vezes que não se reconheceu
ao ver o seu reflexo ou quantas vezes chorou a olhar para os miúdos, sentindo
que o mundo inteiro, repleto de gente, só os tinha aos três. Ela não conta
quantas vezes já se sentou no chão atrás da porta e desistiu…ou numa calçada no
meio da rua e desistiu. Ou se deitou na cama, fechou os olhos… e desistiu.
Primeiro vieram os aniversários das crianças e nem uma vez o
telefone tocou e a voz do pai do outro lado, disse: “ Parabéns.”. Depois os
Natais. Mais uma vez o telefone mudo, a ausência e a falta de um presente. Já
lá vai mais de uma dezena de anos. Deixou de doer.
Quem é que não faz a menor ideia do quanto a vida pode ser
difícil para uma mulher que desistiu de o ser para nunca desistir de ser mãe? O
pai. O pai que nunca desistiu de nada a não ser de ser Pai.
A mãe que um dia decide mudar o cenário e reescrever o seu
guião, falha inúmeras vezes. A mãe falha. Várias vezes. E nada ao redor dela
muda. Nada. Nem os ventos, nem as marés. O Universo não tem pena dela. Não
importa quantas vezes ela implora, ou quantas vezes ela se humilha, ou se sente
só. Não recebe nenhum sinal divino. Então, ela cansa-se, inclusive, de
desistir. E como quem não se pode dar ao luxo de parar, ela continua.
Toda a tristeza e dor que carrega no peito é dela e ninguém a
sente como ela.
Há dias em que não acredita em novos amanheceres e contradiz
tudo o que já viveu, a malícia do tempo e a veracidade da sua própria memória.
Ela, que amou tão poucas vezes, mas que amou muito em todas elas, sabe que o
amor não é como os outros sentimentos. O amor tem uma lâmina escondida que a
corta e lapida. Dói. Depois dele, nunca mais se é a mesma. Mas a vida não lhe
dá escolha: Há que vivê-la. Levantar depois das quedas. Superar. Faz parte. E
dá medo.
Todas as mães que levam pela mão os filhos que os pais não
quiseram, sabem que vão para uma guerra e que não haverá armadura ou elmo que
as proteja.
Todas as mães que levam pela mão os filhos que os pais não
quiseram, são feitas de muito mais coragem que medo. Todas. Qualquer mãe sabe
disso. Mesmo que de vez em quando o esqueça.
Às vezes ela chega ao
limite, mas aguenta-se. Estoicamente. Então, ela percebe que pode aguentar um
bocadinho mais, e o seu limite vai ficando cada vez maior.
Todas as mães que levam pela mão os filhos que os pais não
quiseram, são heroínas de histórias que devem ser partilhadas. Ensinadas.
Valorizadas.
O mundo está cheio de nada para lhes dar e ainda assim, elas
nunca desistem. Porque desistir na verdade, não é opção. É apenas um pedido de
socorro que só elas ouvem.
Todas as mães que levam pela mão os filhos que os pais não
quiseram, ensinam aos filhos que não há coração de pai que não os aceite. Há é
pais sem coração.
Autora
Ana Kandsmar
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