Ainda ontem, depois de mais uma visita aos meus pais,
comentava com o meu filho como uma boa dose de desumanização ou inconsciência
sobre o valor real da vida, sobretudo da vida daqueles que amamos, nos pode
ajudar a manter-nos à superfície dos “tsunamis” que nos apanham quase sempre
desprevenidos.
Revi uma mulher, vizinha já de certa idade, que deu à luz uma
prole que só as mulheres de antigamente ousavam dar. 11 filhos. Apenas 4 deles
estão vivos. Todos os outros deixaram esta vida cedo demais, a maioria ainda
bebés que não tiveram tempo para assistir às vagas de terror que hoje varrem o
mundo. Foram eles os baldões gigantescos de desgosto e sofrimento, para a
mulher que os gerou e pariu. Agora, quando vejo a Alice a rir-se de tudo e de
nada, quando a ouço gargalhar, mostrando sem pudor a boca desdentada, entregue
às piadas rasas e vazias que a enchem de um alegre frenesim, pergunto-me se ela
alguma vez amou os seus filhos, os seus filhos mortos, porque eu, -penso para
os meus botões - se fosse eu a viver tamanhas desgraças enlouqueceria e ficaria
para sempre e irremediavelmente infeliz e demente, como uma casca de noz à
deriva.
A Europa tem perdido muitos dos seus filhos nos últimos
tempos. A Europa tem-se perdido nos últimos tempos e os europeus sentem-se como
cascas de noz à deriva. E se nos sentimos assim, é porque ainda mantemos viva
essa tal consciência do valor real da vida. E isso não nos facilita em nada a
tarefa de nos mantermos à superfície quando apanhados pelas enxurradas da
desgraça.
Se pudéssemos medir o sofrimento, eu diria que existem - na
minha particular concepção do sofrimento humano -, dois tipos do mesmo. O
grande sofrimento, aquele que vem de rompante, quando menos o esperamos e nos
obriga a reavaliar tudo e a observar a vida sobre novas perspectivas e o pequeno,
mas constante sofrimento, que nos corrói diariamente como uma moinha, uma dor
crónica que nos acompanha sempre e à qual nos acostumamos. Neste segundo grupo,
estamos em certa medida, todos incluídos. Nós que com a frequência com que
comemos, bebemos e dormimos, também nos lastimamos de tudo e mais alguma coisa:
O emprego que vai mal, o chefe que é exigente, o patrão que não paga, o
dinheiro que é escasso, as contas que não param de aumentar, os sonhos que
todos os dias adiamos por mais um dia, mais um mês, mais um ano. Mas há o grupo
dos outros. Daqueles que volta e meia têm a vida “virada de pernas para o ar”
de forma violenta, inesperada, arbitrária. Este é o sofrimento que a Alice não
conhece, porque apesar de ter sofrido as maiores perdas - os próprios filhos-,
a sua vida simples e unívoca tendo como único foco o sustento para o dia-a-dia,
não mais que isso, nunca a levou a questionar-se ou a revoltar-se com a vida ou
com Deus que tão injustamente lhe tirou tantos descendentes. Ela não tinha
tempo para isso. No dia seguinte era preciso de novo amassar o pão e cuidar de
que o básico, o mais básico, não faltasse aos que, sangues do seu sangue ainda
respiravam neste mundo. Pois que então, na minha particular percepção do
sofrimento humano, entendo que apenas um grande sofrimento tem o poder de nos
regenerar, se não estivermos demasiado distraídos. Porque nos abala com tal
força que nos recicla. Humaniza. Ou re-humaniza. E assim lembro-me da Fénix que
das cinzas volta à vida, renovada.
Espero que não precisemos de passar pelo sofrimento
transformador para nos transformarmos, para deixarmos de ser as “Alices” deste
mundo. Já é tempo de sermos humanos de H grande, despertos e conscientes. As
grandes guerras; os Setembros Negros; os conflitos no Médio Oriente; Faixa de
Gaza; Chernobyl; Madrid; a mortandade em África; Charlie Hebdo; Paris; os botes
do mar Egeu; os pedidos de socorro que nos chegam através do próprio planeta…
Todo o universo conspira para nos exigir essa mudança. Do que estamos à espera
se é da Vida, da nossa Vida que falamos?
Autora
Ana Kandsmar
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