Somos maus por sermos bons ou
somos bons por sermos maus?
Podíamos ter aprendido alguma
coisa com séculos de divisão religiosa, racial e étnica. Não aprendemos. Não há
sinais de que 2017 venha a ser um ano melhor do que os que o precederam. A
Europa continuará a escalar a montanha do autoritarismo liberal e a guerra
contra o terror acabará por converter-se numa guerra de extermínio. E a ver
bem, tudo isto acontece porque nos tornámos outra vez, adeptos do niilismo. Niilismo
em todas as frentes, diga-se. Moral, ético, existencial, político. Diga-se
também, que do niilismo à anarquia não vai nenhum passo. Se as sociedades
actuais não acreditam em nada, não respeitam nada e exigem total liberdade para
tudo e para todos, é porque estão decadentes. Mas isso, todos sabemos, e não é
preciso ser especialista em coisa alguma para o perceber. "Um niilista é
um homem que não se curva ante qualquer autoridade; nem aceita nenhum
princípio, qualquer que seja o respeito que esse princípio envolva". Era
assim no tempo de Turguêniev quando escreveu a obra "Pais e Filhos",
e continua a ser assim, hoje.
Não aprendemos nada com o
alastramento das desigualdades e embora séculos de história nos mostrem que
elas trazem ao colo conflitos sociais, continuamos a dissemina-la. Os que ainda
nos manipulam, entretanto conscientes da extensão do mal que produzem, vão
receando a revolta das marionetas. E diz-se por aí, constroem bunkers, ora para
se protegerem de um cataclismo, de uma guerra nuclear, ou, cada vez maior a
hipótese, da rebelião dos mais pobres. Há muitas formas de morrer. Talvez um
bunker evite algumas. Não evitará certamente a lei da vida. Morre-se de
qualquer maneira.
Mas é pena que tenhamos chegado
aqui. Enquanto escrevo isto, sinto um pouco do que terá sido a tristeza de Anne
Frank ao chegar ali. Ao momento terrível em que já não se pode fazer vista
grossa ao conflito, ao ódio e ao temor de perder a vida. E fico ainda mais
triste porque sei que os próximos anos, talvez mais 10, 15, serão anos de
profundas atribulações e todos eles depois de 2017 serão ainda piores que
durante. Deixaremos para os nossos filhos, que aprenderam connosco a intrepidez
do niilismo, a necessidade de o repudiarem, às pressas, para então recuperarem
o que foi perdido às nossas mãos. Usarão como armas várias paixões mortais:
racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas, xenofobia
e homofobia. Estamos então à beira de uma guerra onde o mal combate o mal. E
logo nós que temos sempre em mente as guerras entre o mal e o bem, hoje, como
podemos observar, tudo mentira. É sempre o mal que combate o mal. Deve ser
porque somos afinal humanos e todos os humanos são maus. Ou quase todos. Talvez
que o bem se silencie nesta coisa dos conflitos. O bem nunca se quer envolver.
E como dizia Mandela, “Para que o mal vença, basta que os bons não façam nada.”
O apartheid, sob diversas
modulações, será restaurado graças aos novos impulsos separatistas.
Construiremos mais muros. Controlaremos mais fronteiras com policiamentos que
não se farão rogados a premir gatilhos e as alianças cada vez mais frágeis
acabarão por ruir como castelos de cartas. O mundo tal como era desde o final
da Segunda Guerra Mundial, acabou. Sofremos mudanças com a Guerra Fria e a
derrota do comunismo, sofremos mudanças com as descolonizações, mas se
mantínhamos o mundo respirável era porque ainda queríamos muito acreditar. As
democracias entretanto instauradas, a queda do muro de Berlim, tudo isso ainda
nos fazia acreditar…. De lá para cá demos um salto gigantesco no vazio.
Deixámo-nos de efabulações. Tornámo-nos outra vez niilistas e o mundo tornou-se
irrespirável.
O Hunger Games que conhecemos do
cinema é uma analogia bem construída daquilo que é afinal a nossa realidade.
Começou logo no princípio do século com o choque entre a democracia e o
capitalismo. A democracia liberal e o capitalismo neoliberal digladiam-se pelo
primeiro lugar no pódio. Os governos economicistas e o povo digladiam-se pelo
primeiro lugar no pódio. O Humanismo perdeu, creio que definitivamente, o
primeiro lugar no pódio.
Os desejos humanos colocaram a
tecnologia num pedestal sagrado e o capitalismo venceu o humanismo nesse
processo.
Se há um demónio a culpar por
tudo o que já foi feito até aqui, esse demónio chama-se capitalismo. Foi ele
que tornou mais profundo o fosso entre ricos e pobres, foi ele que devastou o
Médio Oriente, é também ele que muito mais do que qualquer guerra, multiplica
refugiados, pois, como alguns já se terão dado conta, mais do que em busca da paz,
eles saem em busca daquilo que só o dinheiro pode comprar. E eis que chegámos
aqui.
Nos anos 70, e ainda nalguns que
se lhe seguiram, os miúdos brincavam na rua. Tudo corria bem até ao momento em
que as brincadeiras deixavam de ser pacíficas. Nessa altura, os nossos pais mal
nos viam envolvidos em brigas, pegavam-nos pelos braços e obrigavam cada um a
seguir para sua casa. Acabava ali a discórdia. Cada um em sua casa. Embora as
minhas memórias de infância sejam mal comparadas com o que se vai passando pelo
mundo, sinto que é preciso haver “pais” que nos puxem pelo braço e nos obriguem
a cada um, a ficar na sua própria casa. Recordo-me que o meu pai, perante a
minha insistência em voltar à rua, dava um murro na mesa e dizia “Basta! Cada
um no seu canto!” É preciso agora, perante esta guerra entre culturas, entre
muçulmanos e cristãos, árabes e ocidentais, que alguém dê o murro na mesa e
diga “Basta! Cada um no seu canto”. As medidas de controlo de fronteiras mais
não são que um mal necessário. Os “muros” terão de ser cada vez mais para que
os “murros” sejam cada vez menos.
AUTORA
Ana Kandsmar
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