Não vou fazer um relato do que é
combater um incêndio, porque é disso que se trata, um combate, um combate
desigual, cruel, entre homem e natureza. Não sou bombeira, ninguém da minha
família o é.
Já estive próxima de fogo, mas nunca
de um incêndio, nunca estive cara a cara com as labaredas que devoram tudo por
onde passam, nunca olhei nos olhos a chama que engole florestas, casas e vidas.
Não posso fazer um relato do sentimento que move tantos heróis anónimos deste
país, e é incontestável que são heróis, como não posso descrever o que sentem
nas horas infindáveis de sacrifício. Não consigo imaginar o esforço, físico e
psicológico, o cansaço, o calor infernal, o ar irrespirável, o fumo, o cheiro,
o que é não conseguir ver, o sentirem-se encurralados, a frustração de não
conseguir fazer mais, dar mais…e eles já dão tanto, já se dão tanto!
Há situações que não são
imagináveis, só estando lá, só quem as vive as conhece realmente. Acredito até
que talvez nem haja vocabulário que o consiga descrever.
Eu não sei, não sei o que é, nem
o consigo imaginar. O que vejo nas imagens arrepiantes que nos chegam através
da comunicação social não passa disso, de imagens, distantes.
Ouvimos e lemos relatos
perturbadores de quem viveu o inferno na primeira pessoa.
Impressionamo-nos, comovemo-nos,
solidarizamo-nos, fazemos-lhes honras de heróis, não há dúvida que o são. Somos
tocados pela sua bravura, abnegação, pela sua exaustão.
Agradecemos.
Mas eu não sei o que é, não sou
bombeira…mas tenho amigos que o são, tenho amigas que são mulheres de
bombeiros, os meus filhos têm amigos que são filhos de bombeiros e o que eu
sei, aquilo que, longe dos cenários dantescos, a comunicação social não mostra,
é que são pessoas, com as suas vidas, a sua família, os seus empregos, os seus
passatempos, mas que se necessário, se necessárias, deixam a sua família, os
seus empregos e a sua vida para irem em socorro de quem necessita… e muitas
vezes deixam mesmo a sua vida por lá.
Mais forte que qualquer outro
sentimento, quando necessário, quando necessários, sentem o desejo de ir, é
imprescindível irem, dê por onde der. Sabem que todos os braços são
necessários, que um par de braços mais pode fazer a diferença e que nunca são
demais.
E deixam tudo, sem olhar para
trás, deixam as suas famílias, os seus maridos e mulheres, filhos e pais,
esperando que regressem. Famílias que orgulhosamente sabem e carinhosamente
aceitam que eles têm de ir, não que sejam obrigados, são voluntários, mas
porque não conseguem deixar de ir, de ajudar, de se dar! Também estas famílias
nos dão tanto. Cada partida vivida, cada ausência sofrida do seu ente querido
bombeiro, na incerteza do regresso, são dádivas que nos fazem.
“Como consegues?” pergunto a uma
amiga mulher de um bombeiro. Como resposta obtenho um sorriso, um sorriso
sereno de quem já viveu certamente tantas horas de angústia, de incerteza, mas
que sabe e aceita que o lema “vida por vida” é algo maior que a nossa dimensão
humana. É o que os torna únicos, especiais…heróis! Um dia também o seu filho
será bombeiro.
Também sei o que é o olhar
exausto de uma colega, comandante de uma corporação, que gozou os dias de
férias em cursos, ações de formação e outros afazeres específicos e necessárias
para melhor desempenhar a sua função…nos bombeiros, porque a sua profissão é
outra. O olhar atento e ansioso de quem passa a curta hora de almoço ao
telefone a tratar de assuntos relacionados com a corporação e com ocorrências.
Sentei-me ao seu lado e afinal nem conseguimos conversar, engoliu o almoço entre
palavras ao telemóvel que não pode deixar de atender.
Sei o que é o olhar de raiva,
desilusão, de sentido de injustiça, de inconformismo, por terem sido acusados
de não terem prestado o auxílio que, compreensivelmente, era o desejado pela
população em horas de aflição. Eles que estiveram lá, lá ou noutro local, onde
também eram necessários. Eles que vão, que combatem, que dão tudo o que têm…que
se dão. Sei ainda o que é o olhar esgotado de quem esteve horas ou dias a
combater um incêndio e teve de ir diretamente para o emprego, só são
justificadas as ausências ao serviço durante o tempo efetivo de combate ao
incêndio.
Mas sei também como brilha uma
chama única de amor imenso no olhar de quem tanto se dá aos outros! Bem-haja!
Nota: Optei pela expressão bem-haja,
que raramente uso, porque é aqui que a oiço, nesta terra onde tenho o
privilégio de conviver com bombeiros.
Nota 2: Neste texto refiro-me à
minha família direta, sei que tenho primos mais afastados que são ou foram
bombeiros. Bem-haja também para eles.
Margarida Veríssimo
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