Lembro-me de ter visto na
televisão um programa em que uma gralha, equilibrada no braço de um semáforo
que atravessava a via rápida, num momento calculado, deixa cair no asfalto uma
noz que tem no bico e vê-a ser esmagada pelo pneu de um carro que passa. Depois,
num ruminar estratégico digno de um Júlio César às portas da Gália, a gralha
espera que o sinal fique vermelho e mergulha em voo picado para o chão,
recolhendo apressadamente os bocados esmagados da noz.
Recordo-me de uma outra que, em
cativeiro olha com olhos de ver um tubo de vidro estreito em cujo interior é
colocado um cesto pequenino com comida. O cesto tem asa e tudo. Em cima do
tubo, na horizontal, está um arame fino e direito com cerca de vinte
centímetros.
A gralha olha para aquilo e pensa,
imagina, coloca hipóteses… Primeiro, pega no arame com o bico e introdu-lo
certeiro no tubo, mas não consegue sacar o cesto. Tira o arame, pensa mais um
bocadinho, voa com ele no bico até ao poleiro, preso a uma parede com fissuras,
e enfia-o num pequeno orifício. Empurra-o com o bico até lhe curvar a ponta em
forma de anzol, retira-o, voa de novo até ao tubo, espeta com o arame por ali
adentro e engancha a parte retorcida na pega do cesto, puxando-o para cima.
Come o que estava lá dentro, regala-se de se ver tão esperta.
Enquanto engulo mais uma garfada
de bife do lombo, recordo os chimpanzés, capazes de interiorizar um léxico
superior a sete mil palavras e que, carregando nas letras de uma máquina,
compõem frases como: eu quero água (assim mesmo, com sujeito, predicado e
complemento directo), gosto de ti ou estou triste.
Sim, esses mesmos chimpanzés, que
encarceramos nos zoos para gáudio das nossas criancinhas, e que embalam os seus
bebés, atrás das grades, como nós as embalamos a elas (parecendo, até, que
também lhes cantam ao ouvido). E as formigas? Que, em África, constroem
formigueiros gigantes dotados de sistemas de ar condicionado, cuja sofisticação
é digna de um open space no centro de Manhattan? E a cadela da minha amiga
Vera? Uma pequinois gentil que um dia se travou de amores por uma ninhada de
gatinhos órfãos com empenho tal que ela, que nunca havia sido mãe, encheu as
maminhas de leite e alimentou-os a todos até lhe terem o dobro do tamanho.
Ainda hoje, quando brigam com o
outro cão lá da casa, preto e grande, ela atira-se-lhe ao focinho até que ele,
esparvoado com tamanho arrojo, desiste dos seus intuitos trucidantes e
mastigadores. E lá acaba a lamber os gatos, como uma mãe que seca as lágrimas
do filho com as costas da mão e lhe sussurra "pronto, pronto, já
passou". Ok, ok, nunca vi um porco a andar de bicicleta, mas já vi um
polvo a desatarrachar um frasco com os tentáculos e a abrir a fechadura de uma
porta de entre várias, aprendendo que era aquela que lhe permitiria sair (ou
entrar). E bastou-lhe uma única vez, sem estímulos repetidos ou qualquer outro
engodo pavloviano, uma única vez, caraças! E o bicho ficou a saber para sempre
qual era o caminho da liberdade.
E aquele mistério dos elefantes, que vão todos
morrer ao mesmo sítio, e o das baleias, que se suicidam aos molhos de encontro
à praia, e o dos golfinhos, que derramam ternura sobre crianças doentes e as
ajudam à cura, sem nada pedirem em troca?
Por tudo isto, lamento não me
conseguir livrar do pé para a mão de tantos milénios de escravidão à voragem
carnívora que os antepassados me inscreveram no ADN, e de me vergar amiúde, ao
peso de uma gula que me deixa à mercê de um bom bife do lombo com molho à café.
Às vezes, no entanto, sou atacada
pela calada da noite por estertores franciscanos e dou por mim a pensar que
isto de comer animais mortos que são quase meus irmãos e que de mim diferem,
apenas, por milionésimos de ADN, é assim como que uma espécie de canibalismo e
que, para além de os comer, ainda os destrato com aquela sobranceria própria
dos humanos, o que não está nada bem.
O prólogo é sempre o mesmo:
determinada, a cada ataque sorrateiro de culpa, acabo na fila de um qualquer
restaurante vegetariano e finjo proveito, embora quase vomite com a
consistência espumosa do tofu e do seitan. Ao fim de uma semana de jejum
vegetariano a experimentar todas as receitas de massa e batata com courgettes
que me aparecem nas revistas femininas, começo a ter sonhos eróticos com
bifinhos de perú e bitoques, de preferência com ovo a cavalo. Não sem deixar de
admirar profundamente quem o consegue, diga-se. Acho, aliás, que um vegan
convicto se encontra num estádio superior da existência: mais perto da
perfeição, de Deus ou seja lá do que for que represente aquele todo místico em
que eu própria acredito. Mas eu por aqui continuo, no meu limbo moral privado,
resignando-me à ideia de, na reencarnação seguinte, vir a este mundo sob a
forma de uma aranha peluda, nojenta e potencialmente espezinhável logo na
primeira semana de vida.
Não obstante esta fraqueza
assumida, intuo facilmente que somos todos muito estúpidos e que, se não
conseguimos deixar de os fazer sofrer para nosso prazer (nos matadouros, nas
touradas, na caça, no circo), ao menos que não estejamos tão contentes com a
nossa presunçosa superioridade no pódium da cadeia alimentar e tão convencidos
de que somos muito mais espertinhos do que eles, os animais, essas bestas
irracionais que sobreviveram ao dilúvio na arca flutuante de um velho lunático,
apenas para se reproduzirem e nos servirem.
Quando se fala de defender
animais, defender os seus direitos, não significa que estamos a tentar dar-lhes
direitos de cidadania. Apenas e só, quem defende o seu direito à vida, defende
apenas isso: O seu direito à vida. Não se entende por isso, que todos passemos
a ser vegetarianos e que não os possamos matar para consumo. Apenas que, aos
animais criados para consumo seja dada a dignidade de uma existência pacífica e
digna e na morte lhes seja dado um fim, o mais indolor possível. A isto
chama-se respeito por seres que, não sendo iguais a nós, não são também
inferiores. São apenas diferentes. A nossa pretensa “superioridade” devia
permitir-nos perceber isso.
Um porco consegue memorizar entre
500 a 600 palavras e entender os seus significados. Tem um ADN muito idêntico
ao dos humanos e imaginem, se o porco aprendesse a verbalizar como nós,
poderíamos com as suas 500 palavras, conversar com ele. Claro que todas as
limitações do porco o impedem de dialogar com os humanos. Mas nós também nada
sabemos dos seus roncos, ou o que significam, nem tão pouco aprendemos a sua
forma de comunicar. E somos “superiores”. Outra coisa que sabemos: Somos 7 mil
milhões de humanos no planeta. Conseguiríamos alimentos se abdicássemos todos
de consumir carne? Não creio. Com tantas bocas para alimentar será viável,
desistir da criação de animais em bloco, compactada em espaços infernalmente
exíguos? Talvez isso não seja possível. Pelo menos para já.
Se eu pensar que nos aviários os
frangos nascem e morrem sempre na mesma posição, sem qualquer hipótese de se
movimentarem 1metro que seja, durante toda a sua vida, e que, para que eles se
mantenham imóveis e não constituam ameaça para os seus pares, lhes são cortados
os bicos e as patas (em vida) … Que aos patos lhes são enfiados tubos pelas
goelas abaixo, e que assim passam toda a sua existência sobre este planeta,
sendo incessantemente alimentados, para depois da morte, se transformarem em
foie gras, que as vaquinhas que nos dão a carne e o leite vivem da mesma forma,
toda a sua vida em espaços exíguos, sem o vislumbre de um raio de sol, ou relva
fresca…bem… nós somos umas bestas. Mas esta bestialidade justifica-se
infelizmente pela necessidade de alimentar 7 mil milhões de bocas.
.Mas não justifica a crueldade
com que tratamos os animais noutras circunstâncias. Arrepia-me a festa em que
se celebra a perícia de um cavaleiro, espetando farpas no lombo de um animal,
que antes disso já foi electrocutado nos testículos, (não importa se o animal é
um bovino preto, um touro bravo, um crocodilo ou uma toupeira), é estúpido! Se
o objectivo maior do sofrimento que infligimos seja a quem for, é o nosso
prazer imediato e não uma necessidade, é estúpido! Ontem mesmo recebi uma
mensagem de alguém que dizia: “ Você nem sequer sabe o que é um touro bravo!”
Apeteceu-me mandá-lo catar-se! Defendam os senhores da tauromaquia, a sua arte,
da forma que entenderem. Mas não digam que um touro bravo é uma raça distinta
optimizada para sofrer na arena, geneticamente modificada para não sentir dor!
Nem tão pouco digam que hoje ainda é aceitável que se torturem animais
gratuitamente, porque a actividade faz parte das tradições ou da cultura de um
povo. Ao longo da nossa história, o homem bem ou mal, tem evoluído no sentido
de perceber que o que já não nos serve deve ser mandado fora. É esta a luta dos
que condenam as touradas. Queremos apenas que se comece finalmente a perceber
que há que separar o trigo do joio. Sermos bestas por necessidade, é um mal,
mas é um mal menor. O mal maior é sem dúvida, sermos bestas por hedonismo.
Porque (quem sabe?) talvez os
touros, sejam eles quais forem, temam as multidões e aterrorizados tentem
defender-se como podem da perseguição do cavalo, das farpas e do barulho
ensurdecedor à sua volta, (levando por vezes à morte, cavaleiros e forcados).
Talvez as preguiças gostem de sexo tântrico e por isso demorem horas a
assegurar a sua descendência; e talvez os leões, bichos gregários por natureza,
tenham problemas com a sogra e já não a possam ver à frente; e os ursos, quando
hibernam, sofram de claustrofobia e depois tenham pesadelos; e os pinguins,
todos iguais e aos milhões, tenham crises de identidade; e os salmões, tenham
tendências depressivo-suicidas e por isso venham morrer rio acima; e as
baleias, saibam de facto cantar, e algumas de entre elas sejam prima donnas com
direito a privilégios especiais de diva e a camarote individual; e as coelhas
só tenham orgasmos múltiplos e por isso fodam tanto; e os gatos sintam um
profundo desprezo pelos humanos e por isso não os olhem quando eles os chamam;
e as formigas não gostem de estar sozinhas; e as toupeiras sofram de
agorafobia; e os cães se comportem como groupies à beira da histeria porque nos
adoram, e quando crescerem querem ser como nós, as pessoas, os seus
maravilhosos donos. Quem pode garantir que não seja assim? Quem? Talvez que o
universo em que se move esta Terra onde nos encontramos mais não seja do que um
grão de poeira reflectido na retina de um grilo e, este, um habitante
microscópico de um outro planeta, em órbita numa galáxia diferente e encaixada
num universo muito maior. Portanto, "bora" aí apanhar do chão um
bocadinho de humildade, dessa que anda por aí espalhada, que todos espezinham e
ninguém quer, assumir a nossa ignorância no que respeita a esta merda toda e
ter algum respeitinho, designadamente, pelo grilo.
Ana Kandsmar
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