Uma das memórias de infância que recordo com um misto de carinho e
orgulho é de ver frequentemente o meu pai com um livro na mão. Lá em casa
sempre houve muitos livros. Não apenas livros alinhados em estantes, mas também
livros pousados, entre leituras, nas mesinhas de cabeceira, no móvel do átrio
de entrada, junto ao sofá…Mas é na mão do meu pai que as memórias dos livros me
tocam com mais intensidade.
O meu pai aproveitava o longo percurso para o emprego em transportes
públicos para ler. Suponho que também lesse na pausa do almoço, mas isso numa
altura em que ainda não utilizava esse tempo de pausa no emprego para correr à
beira rio… Há 40 anos ainda não se falava em trail nem em runners. Para
proteger os livros das andanças diárias forrava-os com uma qualquer folha de
papel usado, a reutilização do papel era um ponto de honra lá e casa, muito
antes da palavra reciclar fazer parte do nosso vocabulário, por isso eu nunca
sabia exatamente que livro andava a ler. Via-os na sua mão quando saíamos de
manhã e nos acompanhava à escola, de autocarro. Sabia que depois de nos deixar
na escola, apanharia mais 1 ou 2 autocarros e nessa altura ocuparia todo o
tempo da viagem a ler. Via-os na sua mão quando, já tarde, regressava a casa. Acabava
por vê-los, já sem a tosca forra, à medida que, depois de lidos, iam sendo
adicionados à crescente fila de livros na estante.
Por vezes o meu pai chegava a casa com mais do que 1 livro na mão,
chegava com livros já lidos e vividos e nessa altura sabia que tinha passado
por algum alfarrabista. Não sei se era pelo facto
dos livros andarem meio incógnitos dentro das suas ecológicas capas, se era
aquela espectativa de ver quando mais um livro chegaria a nossa casa, como quem
anseia ver aumentada a sua fortuna, ou se era a simples circunstância dos
livros serem transportados na mão, como algo precioso que não pudesse ficar
longe do toque e do alcance da mão, o certo é que o meu pai chegar a casa com
um ou mais livros na mão era sempre um momento mágico que me fascinava.
Com a passagem dos anos a quantidade de livros
lá por casa foi aumentando significativamente, não apenas livros do meu pai,
evidentemente, a minha mãe, eu e os meus irmão também demos o nosso contributo.
Como se calcula, as respetivas estantes tiveram de ser substituídas por outras
maiores, até que uma das paredes da sala foi totalmente preenchida com uma, mas
mesmo assim havia sempre livros em segunda fila...
Um dia, na minha pausa para o almoço, comprei
mais um livro. Tenho o raro privilégio de trabalhar perto de livrarias, que
frequento assiduamente. Por vezes entro apenas para ver, sentir, folhear os
livros, ver as novidades, mas nesse dia, como em tantos outros, comprei mais um
livro. Saí da livraria com o livro na mão pois agora os sacos têm de ser
comprados… senti-me tão bem! A sensação de andar com um livro na mão é
maravilhosa, sentimos que transportamos algo tão precioso que não pode ficar
longe do toque e do alcance da mão. Enquanto caminhava senti o doce recordar desta
memória da infância!
Gostaria que os meus filhos um dia também
tenham o privilégio de ter recordações destas... vou fazendo a minha parte.
Margarida Veríssimo
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