Sempre
dei livros aos meus filhos. Cedo, muito cedo, vários volumes de livros
infantis, contos, Os Irmãos Grimm, Christian Andersen, Disney… Depois os
juvenis; a História de Portugal; ciência, Civilizações Antigas; As Grandes
Construções do Homem; mistérios e lendas; muita banda desenhada, Tintim,
Asterix, Corto Maltese (o Rafael ficou fã), o maravilhoso conto de Marguerite Yourcenar:
A Fuga de Wong-Fô, (ainda hoje choro quando o leio). Enfim, paredes e mais
paredes forradas de livros e hoje posso dizer que só não os tenho na casa de
banho. Por gosto e necessidade lá fomos coleccionando histórias de todos os
tamanhos e para todos os gostos. Por necessidade, confesso: Eça, Camões,
Camilo. Por gosto, Pessoa, Virgílio, Saramago, Lobo Antunes, Natália Correia,
Florbela Espanca. Saltamos de livro em livro, de história em história como quem
salta pocinhas e procura mergulhar nas profundezas do saber. Cá em casa lê-se
de tudo e cresce-se com o que se lê. Aprendemos, sonhamos, emocionamo-nos,
choramos e rimos.
Há 10
anos, o meu filho tinha apenas 11 e já sabia que nem toda a gente tem a sorte
de acordar com o chilrear dos passarinhos ou com as buzinadelas dos carros que
descem a avenida e se dirigem ao centro da cidade. Aos 11 anos ele já sabia que
existem mulheres escondidas nas burkas, escondidas nas esquinas cinzeladas, por
baixo dos néons em pedaços, mulheres que acordam todos os dias com o barulho
ensurdecedor de bombas a rasgar o céu, o estrondo aterrorizador de edifícios
que em menos de nada se transformam em escombros, rajadas de metralhadoras a
substituir o bulício das ruas, gritos desesperados de pais que seguram os filhos
mortos nos braços. Aos 11 anos o meu menino já sabia que nem todas as mulheres,
nem todos os homens, nem todas as crianças deste mundo dormem à noite,
imitando-o na sua cama quente e confortável. Ensinei-lhe que para muitos, as
noites dão mais medo que sono, e que o medo nos pode transformar em zombies
tacteando no escuro um remédio que nos cure as dores do corpo e da alma.
Ensinei-lhe que enquanto dormimos, comemos, passeamos e amamos, há pessoas no
mundo que caminham pelo deserto em que se transformaram cidades inteiras e não
têm tempo para dormir, o que comer ou quem amar e que nas noites em que são
zombies contemplam retalhos de rios onde corre mais sangue que água. Aos 11
anos o meu pequeno filho já sabia que havia uma África e um Médio Oriente dilacerados
pelas guerras que aparecem nos intervalos dos mercados, “lembra-te filho, as
guerras aparecem sempre nos intervalos dos mercados, nos intervalos das compras
e das vendas, nos intervalos da acumulação de coisas que não valem as vidas que
se acabam. Lembra-te: No Médio Oriente um bom ditador é o garante da
estabilidade. “Sem um bom ditador, todo o Médio Oriente é um matadouro, filho.
Religião, petróleo, armas, todos os pretextos são bons para fazer jorrar
sangue”. Às vezes, onde há muitos sádicos é preciso haver um sádico ainda maior
que encerre os outros em arame farpado.
Defendo-o
ainda hoje: Sadam era o macho Alpha de uma matilha perigosa e sanguinária. E
sobre isto, sobre tudo isto se pode aprender nos livros, e que felizes,
afortunados que nós somos por não ser a vida a ensinar-nos. “Os vendilhões
nunca se foram embora do templo, filho. Repara como apenas nisto concordaram
Alá, Jeová e Cristo: Crescei e multiplicai-vos.” Para grande azar dos cristãos
e até mesmo dos judeus, os muçulmanos são os únicos que seguem a advertência
divina à risca. Há 10 anos, quando os meus filhos me perguntavam para onde iam
as pessoas mortas, eu podia dizer-lhes que elas iam para dentro da estória de
Wong Fô e que uma vez aconchegadinhas nas páginas, podiam finalmente dormir no
interior de uma das suas telas. Porque nas telas de Wong Fô a beleza é tão
intensa, que nada no mundo se lhes compara e só uma beleza assim é capaz de
compensar uma vida inteira de sofrimento e de noites sem dormir. Podia, mas
preferi sempre confrontá-los com a verdade. Os livros, por mais mágicos que
sejam, revelam apenas a grande vontade do autor em embelezar este mundo. Não
que o mundo não seja belo o quanto baste. Nós é que se calhar precisamos de
extrair da leitura uma nova forma de o olharmos.
Ana Kandsmar
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