Não há heresia mais
traiçoeira do que o fundamentalismo religioso. Tomem-se os exemplos mais
conhecidos, os vértices do triângulo mitológico formado por judeus, cristãos e
muçulmanos em torno do mesmo Deus.
Não é preciso mais do
que um olhar, a leitura de duas linhas, um minuto do som que emitem, para
termos a exacta sensação de que os fundamentalistas de qualquer das três
doutrinas estão do lado do bandido. Só para lembrar exemplos mais vivos na
memória, cito três, - que ainda por cima fizeram a política do fundamentalismo
religioso: Bush, Bin Laden, Bini Netanyahu (acreditem, Ariel Sharon foi quase
um menino de coro ao pé deles). O que é que os três inspiram ou inspiraram?
Ódio, medo, repulsa. No que é que os três basearam a sua popularidade? Na
disseminação do ódio, medo e repulsa. E como é que o medo, ódio e repulsa podem
estar ligados ao que é divino, criador, iluminado? Só pela via da apropriação
indébita.
Os ditos
fundamentalistas tomam para si o que não é seu nem de ninguém: a interpretação
absoluta e definitiva do que se coloca como a manifestação do transcendente --
os textos sagrados. "Está escrito", rosnam. Sim, está escrito. Mas o
que significa? Alguém escreveu, alguém representou, traduziu para uma
linguagem, com todos os limites que uma linguagem tem, e que a faz, desde que o
mundo é um mundo escrito e retratado, passível de interpretações.
O exemplo que gosto de
citar é a primeira frase do primeiro versículo do Evangelho de João: "No
princípio era o Verbo". Que verbo é esse, com maiúscula, e que se atreve a
"fazer-se Deus", e mesmo a "ser Deus"? Para mim, é
extremamente claro: se o que foi dado ao evangelista para desenhar, designar,
representar o infinito, foi a palavra, o escrever, o que pode ser mais infinito
do que o verbo? João constrói, com maiúscula, o verbo dos verbos, o infinitivo
absoluto. Confessa, em três linhas, que propõe no Verbo, a representação de
Deus -- a mais grandiosa, na minha opinião. Pois bem, eu posso estar aqui a
dizer disparates, consequência de uma aprendizagem individual que pode até ser
duvidosa. Ou posso ter tido o “insight” do milénio. Não importa.
A visão dos
fundamentalistas, por ter sido interpretada autonomamente, eu não leio nem
encontro lá o mesmo que eles encontram. Por isso não acredito no mesmo em que
eles acreditam. O mundo, deste terceiro milénio, vê-se sob a sombra da batalha
movida por esses sequestradores do sagrado, os que tomam como seu o que é de
Deus. São literal e etimologicamente, os sacrílegos - aqueles que querem
legislar o sagrado e, portanto, usurpar o que é de todos. O mundo está sob o
domínio desta gente. Piorou com a reeleição de Bush (agora um passado infeliz).
Os postos de Condoleeza
Rice e Alberto Gonzales mostraram desde logo o caminho a seguir por uma
humanidade expropriada do seu sentido: Humanidade. E hoje assistimos ao
inevitável, tendo em conta o percurso feito até aqui.
Vamos embalados nos
braços de hereges vestidos de santos, até nos adormecermos. Deixamos que nos
adormeçam. Sobretudo quando não são as nossas guerras, as nossas casas
bombardeadas e os corpos de quem amamos mutilados.
Há quem fale em
anti-Cristo, a figura mítica do apocalipse popular. Mas não, esses tipos não
são assim tão espectaculares! Ao mesmo tempo, são equânimes: são anti-Cristo
como são anti-Maomé, anti-Abraão, anti-Alá… São sobretudo e acima de tudo,
anti-todos-nós! O problema crucial é: Nós, que almejamos a paz, só vamos vencer
quando a palavra tolerância deixar de ser apenas uma palavra e passar a ser um
modo de vida. Mas um modo de vida assim, não pode ser unilateral. Além disso, a
tolerância para poder existir terá que ser ela própria intolerante de vez em
quando. Ou é possível mantê-la viva, sendo tolerante com os intolerantes?
Ana Kandsmar
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