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sábado, 26 de agosto de 2017

OPINIÃO | O Profano do Sagrado | ANA KANDSMAR

Não há heresia mais traiçoeira do que o fundamentalismo religioso. Tomem-se os exemplos mais conhecidos, os vértices do triângulo mitológico formado por judeus, cristãos e muçulmanos em torno do mesmo Deus.

Não é preciso mais do que um olhar, a leitura de duas linhas, um minuto do som que emitem, para termos a exacta sensação de que os fundamentalistas de qualquer das três doutrinas estão do lado do bandido. Só para lembrar exemplos mais vivos na memória, cito três, - que ainda por cima fizeram a política do fundamentalismo religioso: Bush, Bin Laden, Bini Netanyahu (acreditem, Ariel Sharon foi quase um menino de coro ao pé deles). O que é que os três inspiram ou inspiraram? Ódio, medo, repulsa. No que é que os três basearam a sua popularidade? Na disseminação do ódio, medo e repulsa. E como é que o medo, ódio e repulsa podem estar ligados ao que é divino, criador, iluminado? Só pela via da apropriação indébita.

Os ditos fundamentalistas tomam para si o que não é seu nem de ninguém: a interpretação absoluta e definitiva do que se coloca como a manifestação do transcendente -- os textos sagrados. "Está escrito", rosnam. Sim, está escrito. Mas o que significa? Alguém escreveu, alguém representou, traduziu para uma linguagem, com todos os limites que uma linguagem tem, e que a faz, desde que o mundo é um mundo escrito e retratado, passível de interpretações.

O exemplo que gosto de citar é a primeira frase do primeiro versículo do Evangelho de João: "No princípio era o Verbo". Que verbo é esse, com maiúscula, e que se atreve a "fazer-se Deus", e mesmo a "ser Deus"? Para mim, é extremamente claro: se o que foi dado ao evangelista para desenhar, designar, representar o infinito, foi a palavra, o escrever, o que pode ser mais infinito do que o verbo? João constrói, com maiúscula, o verbo dos verbos, o infinitivo absoluto. Confessa, em três linhas, que propõe no Verbo, a representação de Deus -- a mais grandiosa, na minha opinião. Pois bem, eu posso estar aqui a dizer disparates, consequência de uma aprendizagem individual que pode até ser duvidosa. Ou posso ter tido o “insight” do milénio. Não importa.

A visão dos fundamentalistas, por ter sido interpretada autonomamente, eu não leio nem encontro lá o mesmo que eles encontram. Por isso não acredito no mesmo em que eles acreditam. O mundo, deste terceiro milénio, vê-se sob a sombra da batalha movida por esses sequestradores do sagrado, os que tomam como seu o que é de Deus. São literal e etimologicamente, os sacrílegos - aqueles que querem legislar o sagrado e, portanto, usurpar o que é de todos. O mundo está sob o domínio desta gente. Piorou com a reeleição de Bush (agora um passado infeliz).

Os postos de Condoleeza Rice e Alberto Gonzales mostraram desde logo o caminho a seguir por uma humanidade expropriada do seu sentido: Humanidade. E hoje assistimos ao inevitável, tendo em conta o percurso feito até aqui.

Vamos embalados nos braços de hereges vestidos de santos, até nos adormecermos. Deixamos que nos adormeçam. Sobretudo quando não são as nossas guerras, as nossas casas bombardeadas e os corpos de quem amamos mutilados.


Há quem fale em anti-Cristo, a figura mítica do apocalipse popular. Mas não, esses tipos não são assim tão espectaculares! Ao mesmo tempo, são equânimes: são anti-Cristo como são anti-Maomé, anti-Abraão, anti-Alá… São sobretudo e acima de tudo, anti-todos-nós! O problema crucial é: Nós, que almejamos a paz, só vamos vencer quando a palavra tolerância deixar de ser apenas uma palavra e passar a ser um modo de vida. Mas um modo de vida assim, não pode ser unilateral. Além disso, a tolerância para poder existir terá que ser ela própria intolerante de vez em quando. Ou é possível mantê-la viva, sendo tolerante com os intolerantes?












Ana Kandsmar


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