Não o faço diariamente, mas volta e meia instruo
os meus filhos sobre o meu funeral. Não que a morte me espere já ali ao virar
da esquina, mas sei que me espreita. Cruzou-se comigo algumas vezes. A primeira
de que me lembro, eu tinha 4 anos e olhei-a nos olhos, no fundo de uma mina de
água. Por entre o lodo e musgo verdete, folhas de nenúfar a dormitar
silenciosamente sobre as águas, ela deixou-me passar incólume, de regresso aos
braços da minha avó.
De novo nos voltámos a encarar aos 19, nessa
altura num bloco operatório gélido e imaculado. E outra vez aos 30. Apanhou-me
de surpresa a cruzar um tapete de alcatrão. A chegada dela fez-se acompanhar de
um baque ensurdecedor. Tombei com a cabeça sobre o vidro que se estilhaçou e de
um ângulo completamente novo, observei toda a parafernália que habitualmente
envolve um acidente na estrada. Muita gente curiosa se juntou, dando livres
asas ao desejo de ver sangue, os bombeiros e a polícia assinalando marcha de
urgência, desenvolvendo esforços para me manterem viva. Vi tudo. Ouvi tudo. E
do centro da minha inconsciência, observei a cena. Via um filme. Onde eu
estava, com a morte ao meu lado, podia muito bem ser uma sala de cinema. E as
cenas chocantes que se projectavam perante os meus olhos faziam-me estremecer
na cadeira. Pensava: Coitada! O carro vai incendiar-se e os bombeiros não
conseguem tirá-la lá de dentro!”
Conseguiram. Escapei por um triz. Não sei em que
momento a morte me deixou, mas quando dei por mim já estava entregue às equipas
médicas. Só queria saber dos meus filhos. Se eles estavam bem. O carro havia
sido em parte consumido pelo fogo e eu tinha escapado viva. Os meus filhos
tinham escapado vivos. E a morte ter-se-ia, a dada altura, talvez por detestar
o ajuntamento de multidões que vão ali só para a ver, timidamente afastado.
Todavia, ronda-me que eu bem a sinto. Espreita por
uma oportunidade. Um deslize. Uma distracção. Um acto impensado. É assim que
ela age. Como um predador que se esconde atrás das estepes das savanas, espera
silenciosamente a presa. Ao mínimo descuido e estamos nas suas garras.
Por isso, por previdência, não vá o diabo tecê-las
e eu acabar com os quatro costados num buraco de terra fria e húmida, no meio
de vizinhos que não conheço de lado nenhum (Deus sabe como eu detesto ter
vizinhança por perto), instruí-os. Não quero ir parar a um cemitério. A nenhum
cemitério. Não quero ir parar a lugares onde encontrarei restos de outros que
morreram antes de mim.
Quero um funeral Viking. Quero deslizar sobre as
águas calmas de uma lagoa, deitada no interior de um pequeno barco a remos ou
sobre uma jangada. Na margem, um arqueiro experimentado nas lides da flecha,
há-de lançar-me um archote certeiro, a ponta enrolada por uma tira de pano
imbuída em querosene. As labaredas hão-de consumir o meu corpo à medida que a
corrente me leva ao oceano. Depois, as ondas hão-de engolir-me e as minhas
cinzas viajarão pelos sete mares.
Agora a sério…é uma pena que não se permita em
Portugal um funeral temático. Toda a gente devia poder decidir como é que quer
despedir-se deste mundo.
Não terei o meu funeral Viking. Terei que me
contentar com o crematório na capital. Mas instruí os meus filhos. Quero ao
menos que o pote com as minhas cinzas seja enterrado onde possam plantar uma
árvore. Uma floreira. Que nesse momento em que me dispõem na terra como uma
semente, se ouça ao fundo o violino do David Garrett a soltar as notas de Bach.
Quero o Air na minha despedida. E rosas brancas. E tulipas. Apenas rosas
brancas e tulipas que podem vir de todas as cores. E quero que os meus filhos
fiquem atentos ao preciso momento em que soar a última nota. Fiquem atentos.
Nesse instante, nesse preciso instante, no nanominimicro segundo que antecederá
o silêncio, eu pousarei um beijo nas vossas faces e dir-vos-ei ao ouvido que
não poderia ter-vos amado mais, pois coube-me no coração, por vós, todo o amor
que algum dia foi germinado.
Ana Kandsmar
Muito profundo amiga, desejo que certamente os teus filhos não irão deixar de o cumprir. Mas enquanto isso não acontecer amiga, deixa que a vida seja uma benção e que possas viver muitos momentos de alegria junto de que mais amas que certamente são os teus maravilhosos filhos.
ResponderEliminarQuero um dia te conhecer pessoalmente, pois tenho a certeza que irei conhecer uma senhora de extrema beleza quer exterior como interior.
Bem hajas!
Muito obrigada, Jorge! :)
EliminarIrrepreensível e tocante, como sempre. Uma contadora de histórias invulgar com uma marca tão própria e de uma capacidade criativa tão ímpar que seria uma perda para todos nós se não escrevesses.
ResponderEliminarObrigada, Bruno! Fico tão feliz com as tuas palavras! :)
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