sábado, 9 de setembro de 2017

OPINIÃO | No Fio da Navalha... | ANA KANDSMAR

Espantam-se aqueles que me conhecem bem e sabem que defendo, muitas vezes, aquilo que parece a muitos só defensável por partidos de Direita. Todavia, há que dize-lo, Direitas há muitas, e a minha é definitivamente uma Direita torta. Ou se quiserem, de uma Direita que também se revê em apêndices de Esquerda, se é que se pode dizer que essa Direita existe.

Talvez seja afinal uma coisa muito minha olhar com desconfiança para multiculturalismos e abominar capitalismos, aplaudir a soberania dos Estados e invocar a cooperação entre eles, ter horror a touradas e condenar a IVG.

Acho que mais do que ideologias politicas e partidárias, sou uma idealista pela Humanidade. Entendo que o Bem Comum se sobrepõe ao Bem Individual e contra-senso ou não, parece-me que é impossível ao Bem Comum existir se não passar primeiro pelo Bem Individual. Sigo a premissa de que indivíduos felizes fazem comunidades felizes. Comunidades felizes fazem nações felizes e nações felizes…bem, parece-me óbvio, fazem o mundo feliz.

E já estão vocês a pensar que isso é utópico e para além do mais seria uma profunda chatice. Lá vêm os defensores da evolução pela dor, dizer que o sofrimento faz parte, e que, é com sangue, suor e lágrimas que nos fazemos à vida. A ideia, deixem-me que vos diga, não sendo descabida de todo está a ser muito bem aproveitada por quem de sangue, suor e lágrimas percebe népia. Esses são os que mais do que qualquer um de nós estão no topo da cadeia alimentar. Comem-nos a carne, sugam-nos o sangue e roem-nos os ossos. Até que de nós nada reste.

Sem darmos conta, antes ainda da carne, consomem-nos a humanidade. O que faz de nós pessoas. Humanos. E ser humano é ter aquela coisa que formiga dentro da nossa alma e nos faz arredar os olhos do nosso prato meio vazio para o prato vazio do outro. Isso é a nossa chama. Caso não se tenham dado conta ainda, saibam que esses, no topo da cadeia alimentar, estão a apagá-la.

Quando no início do Séc.XX se instituiu a Carta dos Direitos Humanos, foi precisamente, para que essa chama nunca se apagasse. Infelizmente, hoje ela tem o vigor da tímida chama de uma vela. Quando aceitamos que se perpetue o velho mercantilismo da vida, apagamo-la.

Quando inventamos novas formas de a mercantilizar apagamo-la.

Quando nos vergamos à indignidade, apagamo-la.

Quando nos tornamos insensíveis à dor alheia, apagamo-la.

Quando usamos e descartamos o outro, apagamo-la.

E assim vamos, de apagão em apagão, sempre soprando numa luz cada vez mais ténue, até que ela se extinga.

Vamos a factos. Em Portugal, o número de nascimentos foi, em 2007 e a partir de 2009, sempre inferior ao número de óbitos. Desde 1960 que tal nunca tinha acontecido.

Apesar de em 2015 terem nascido mais 3 133 crianças que em 2014, a diferença entre o total de nascimentos e de óbitos correspondeu a -22 423, mantendo-se assim o saldo natural ininterruptamente negativo que se tem verificado ao longo dos últimos oito anos.

Somos, portanto, mais do que um país de velhos. Somos um país de moribundos. E os que pelo meio se encontram na idade ativa são fodidos e mal pagos.
Contribui para isto a precariedade laboral. Criar famílias não se coaduna com incertezas, inseguranças e vidas no fio da navalha.

Somos a base da pirâmide. Somos os consumidores que colocam a economia em movimento. Consumir, não se coaduna com incertezas, inseguranças e vidas no fio da navalha.

Somos os migrantes. Procuramos fora da terra que nos pertence, o que em condições dignas, a nossa terra devia oferecer. Somos os que abandonam os seus idosos nos depósitos a que chamamos lares. Estar perto dos nossos ou termos condições para lhes aprouver as necessidades não se coaduna com incertezas, inseguranças e vidas no fio da navalha.

Em suma, longe dos capitalismos que só olham aos números, almejar um Estado Social que se encarregue verdadeiramente de dar a mão a quem já não tem força para levantar-se e impedir que continuemos a escalar perigosamente a montanha de desigualdades que começam na legislação laboral é também uma forma de impedir que a chama de humanidade que ainda brilha dentro de cada um de nós, nunca se apague.

Somos a base da pirâmide. A carne para canhão. A melhor definição para descartável. Mas somos também a força que leva o país em braços para que outros possam descansar nos seus andores dourados.


E essa força não se coaduna com incertezas, inseguranças e vidas no fio da navalha.












Ana Kandsmar

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