Espantam-se aqueles que me conhecem bem e sabem
que defendo, muitas vezes, aquilo que parece a muitos só defensável por
partidos de Direita. Todavia, há que dize-lo, Direitas há muitas, e a minha é
definitivamente uma Direita torta. Ou se quiserem, de uma Direita que também se
revê em apêndices de Esquerda, se é que se pode dizer que essa Direita existe.
Talvez seja afinal uma coisa muito minha olhar com
desconfiança para multiculturalismos e abominar capitalismos, aplaudir a
soberania dos Estados e invocar a cooperação entre eles, ter horror a touradas
e condenar a IVG.
Acho que mais do que ideologias politicas e
partidárias, sou uma idealista pela Humanidade. Entendo que o Bem Comum se
sobrepõe ao Bem Individual e contra-senso ou não, parece-me que é impossível ao
Bem Comum existir se não passar primeiro pelo Bem Individual. Sigo a premissa
de que indivíduos felizes fazem comunidades felizes. Comunidades felizes fazem
nações felizes e nações felizes…bem, parece-me óbvio, fazem o mundo feliz.
E já estão vocês a pensar que isso é utópico e
para além do mais seria uma profunda chatice. Lá vêm os defensores da evolução
pela dor, dizer que o sofrimento faz parte, e que, é com sangue, suor e
lágrimas que nos fazemos à vida. A ideia, deixem-me que vos diga, não sendo
descabida de todo está a ser muito bem aproveitada por quem de sangue, suor e
lágrimas percebe népia. Esses são os que mais do que qualquer um de nós estão
no topo da cadeia alimentar. Comem-nos a carne, sugam-nos o sangue e roem-nos
os ossos. Até que de nós nada reste.
Sem darmos conta, antes ainda da carne,
consomem-nos a humanidade. O que faz de nós pessoas. Humanos. E ser humano é
ter aquela coisa que formiga dentro da nossa alma e nos faz arredar os olhos do
nosso prato meio vazio para o prato vazio do outro. Isso é a nossa chama. Caso
não se tenham dado conta ainda, saibam que esses, no topo da cadeia alimentar,
estão a apagá-la.
Quando no início do Séc.XX se instituiu a Carta
dos Direitos Humanos, foi precisamente, para que essa chama nunca se apagasse.
Infelizmente, hoje ela tem o vigor da tímida chama de uma vela. Quando
aceitamos que se perpetue o velho mercantilismo da vida, apagamo-la.
Quando inventamos novas formas de a mercantilizar
apagamo-la.
Quando nos vergamos à indignidade, apagamo-la.
Quando nos tornamos insensíveis à dor alheia,
apagamo-la.
Quando usamos e descartamos o outro, apagamo-la.
E assim vamos, de apagão em apagão, sempre
soprando numa luz cada vez mais ténue, até que ela se extinga.
Vamos a factos. Em Portugal, o número de
nascimentos foi, em 2007 e a partir de 2009, sempre inferior ao número de
óbitos. Desde 1960 que tal nunca tinha acontecido.
Apesar de em 2015 terem nascido mais 3 133
crianças que em 2014, a diferença entre o total de nascimentos e de óbitos
correspondeu a -22 423, mantendo-se assim o saldo natural ininterruptamente
negativo que se tem verificado ao longo dos últimos oito anos.
Somos, portanto, mais do que um país de velhos.
Somos um país de moribundos. E os que pelo meio se encontram na idade ativa são
fodidos e mal pagos.
Contribui para isto a precariedade laboral. Criar
famílias não se coaduna com incertezas, inseguranças e vidas no fio da navalha.
Somos a base da pirâmide. Somos os consumidores
que colocam a economia em movimento. Consumir, não se coaduna com incertezas,
inseguranças e vidas no fio da navalha.
Somos os migrantes. Procuramos fora da terra que
nos pertence, o que em condições dignas, a nossa terra devia oferecer. Somos os
que abandonam os seus idosos nos depósitos a que chamamos lares. Estar perto
dos nossos ou termos condições para lhes aprouver as necessidades não se
coaduna com incertezas, inseguranças e vidas no fio da navalha.
Em suma, longe dos capitalismos que só olham aos
números, almejar um Estado Social que se encarregue verdadeiramente de dar a
mão a quem já não tem força para levantar-se e impedir que continuemos a escalar
perigosamente a montanha de desigualdades que começam na legislação laboral é
também uma forma de impedir que a chama de humanidade que ainda brilha dentro
de cada um de nós, nunca se apague.
Somos a base da pirâmide. A carne para canhão. A
melhor definição para descartável. Mas somos também a força que leva o país em
braços para que outros possam descansar nos seus andores dourados.
E essa força não se coaduna com incertezas,
inseguranças e vidas no fio da navalha.
Ana Kandsmar
Muito bom texto! :)
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