Que maldita noite tinham escolhido para
se aventurarem pelos caminhos de Sintra só esperava que o carro não lhes
falhasse antes de chegarem a casa de Elisabete. Catarina conduzia, tirara a
carta há pouco mais de um mês mas fazia-o com uma fantástica mestria, nascera
para aquilo. Tinha colocado a morada da amiga no GPS do seu telemóvel mas
naquela zona já ficara sem rede por diversas vezes e habituada como estava a
estas modernices da tecnologia nem se lembrara de imprimir um mapa que
funcionaria como solução alternativa.
Na
radio tocava a música do Michael Jackson, “Thriller”, como nem poderia deixar
de ser, estavam na noite das Bruxas, na televisão deveriam estar a passar
naquele momento todos os filmes de terror, desde a saga “Sexta-Feira 13” até ao
“Pesadelo em Elm Street”, dos quais era fiel seguidora, mas agora ali, a olhar
para a escuridão lá fora, com as árvores que pareciam criar formas que avançavam
na sua direção, era aterrador.
Reparou
que Catarina começara a conduzir mais devagar.
-
Não me digas que não temos gasolina. Ou que o carro vai parar. Eu não quero
ficar aqui neste isolamento, ouviste?
-
Não, nada disso! Está a levantar-se um espesso nevoeiro e como não conheço bem
o caminho prefiro ir mais devagar. E vê lá se paras de me assustar. Quero ficar
aqui parada tanto como tu.
Suspirou.
Sabia que o medo podia tomar conta de si a qualquer momento se começasse com
aquelas ideias absurdas. Mas naquele preciso momento o seu telemóvel
desligara-se, perdera a pouca bateria que tinha.
-
O teu telemóvel está a funcionar Cat?
-
Não o trouxe!
-
Não o trouxeste? Mas… - olhou mais uma vez para o seu que acabara de se
desligar.
-
O que é que aconteceu?
-
Acho que fiquei sem bateria.
Olhou
para ela, reduzindo ainda mais a velocidade.
-
Como é que isso pôde acontecer? Não te lembraste de o carregar antes de
sairmos?
-
Esqueci-me… - não tinha desculpa. Tinha estado a jogar e por isso é que a
bateria morrera mais depressa.
- E então agora diz-me como é que pensas chegar
a casa da Elisabete? Eu ainda só lá fui uma vez e era de dia, não sei se
reparaste que o nevoeiro está a aumentar, quero sair daqui o mais depressa
possível.
-
E se voltássemos para trás até encontrarmos alguma casa e perguntávamos a
alguém o caminho.
-
Voltar para trás? Estás maluca? E como é que achas que eu dou aqui a volta?
Ainda levamos com um carro se eu me atravessar na estrada para fazer inversão
de marcha ou caímos numa valeta. Não me vou arriscar.
Não
é que passassem ali muitos carros, mas mais uma vez tinha razão. Aquele seu tão
característico bom senso deixava-a sempre desarmada.
-
Vamos continuar e assim que virmos luzes paramos e perguntamos qual a direção a
seguir.
-
Está bem Cat. Mas vê lá se consegues ir só um pouquinho mais depressa.
Torceu
o nariz mas não lhe respondeu.
-
Será que esta serra tem lobisomens ou até mesmo vampiros?
-
E se te calasses?
Não
trocaram mais nenhuma palavra, estavam ambas assustadas.
-
Olha ali - apontou para a frente - estás a ver aquela luz?
-
Estou. Achas que é uma casa?
-
Não sei.
-
Vamos ver, mas espero seriamente que não estejas a pensar sair do carro.
Realmente
ainda não pensara no que faria. Era evidente que não queria sair da protecção
que o carro lhe conferia, mas àquela hora e com aquele tempo não andava ninguém
por ali e se tivesse que bater à porta daquela casa e pedir ajuda. Fá-lo-ia.
A
luz tremeluzente parecia vir lá de dentro. Saíram da estrada estacionando na
larga berma diante do portão. Catarina parou o carro sem o desligar, não se
queria arriscar a que não voltasse a pegar.
Era de pedra com um ar bastante
decrépito, um velho portão de madeira que a humidade da serra apodrecera com o
tempo, algumas árvores tombadas e a vegetação cerrada que mal permitia ver o
caminho de acesso. Parecia mais uma ruina do que uma casa. Mas não estava
abandonada a luz a brilhar lá dentro confirmava-o.
- E agora o que é que fazemos? -
abriu um pouco a janela, o ar da noite era gelado e, contudo, naquela casa não
havia fumo a sair pela chaminé. Como se aqueceriam? Não parecia ter
eletricidade.
- Não sei Marta. Só sei que daqui
não me mexo, e se calhar era melhor fazeres o mesmo. Devíamos ir embora
enquanto podemos.
-
Calma, esta não é uma casa de chocolate nem nós somos o Hansel e a Gretel. Espera
pareceu-me ver algo a mover-se. - Fechou a janela. Não ia sair do carro estava
decidido.
Não
sabiam o que fazer a seguir.
Uma
mão bateu ao de leve na janela do seu lado. Gritaram as duas ao mesmo tempo olhando
a medo, não tinham visto ninguém aproximar-se. E no entanto ali estava uma
velha senhora embrulhada numa capa que as olhava serenamente.
-
Desculpem se as assustei meninas. Não era minha intenção.
Olhando
para ela percebeu que devia ter muita idade, meteu-lhe pena por a ver ali tão
só, com aquele frio. Carregou no botão para voltar a descer o vidro com
Catarina ao seu lado a murmurar-lhe “não abras, não abras”. Resolveu ignorá-la.
-
Boa-noite.
-
Boa-noite minha filha. O que fazem na serra tão tarde?
-
Vamos para casa de uma amiga mas parece que nos perdemos. Será que nos poderia
ajudar.
-
Assim o espero.
-
É uma casa amarela grande, sabemos que é nesta direção e que fica perto da
Quinta da Regaleira, tem um grande portão de ferro forjado, mas infelizmente
não me lembro do número nem se tem nome.
-
Eu posso ajudar-vos, conheço a casa. Vão na direção certa, devem continuar este
caminho até ao final quando encontrarem a encruzilhada devem voltar à vossa
esquerda subam uma estrada de terra batida e encontrarão o que procuram. Não
têm como se enganar.
-
Muito obrigada minha senhora e muito boa-noite.
Preparava-se
para fechar a janela.
-
Só mais uma coisa, - a velha senhora olhava ora para uma ora para outra. - Não
devem voltar a parar. Se virem alguma coisa neste caminho que vos chame a
atenção continuem sempre em frente, nunca olhem para trás.
Agora
começava a ter medo.
-
Não estou a perceber? O que quer dizer com isso? O que é que poderíamos ver?
-
A serra à noite não é segura, mas nesta noite em particular o véu entre os
mundos é muito ténue, as almas andam entre nós antes de fazerem a sua passagem.
Devem ignorá-las e se por acaso as olharem elas irão tentar seguir-vos e ficarão
presas neste mundo até ao próximo Samhain.
-
Samhain?
-
Esta é a noite da santificação, celebramos aqueles que nos antecederam e
aqueles que se preparam para partir. Os mortos.
Aquilo
não estava a acontecer.
-
Obrigada. Vamos seguir o seu conselho.
Já
só queriam sair dali o mais depressa que conseguissem. Entretanto um gato preto
tinha saltado para cima do capô do carro. A velha senhora pegou-lhe voltando-se
para o caminho de acesso à casa.
-
Vamos embora e depressa, estou cheia de medo. - Catarina olhava para a estrada,
certificando-se de que era seguro avançar.
-
Nem faltou o gato preto. Reparaste?
Voltou
a olhar para aquela casa e reparou que a luz que anteriormente brilhara já não
se via. Resolveu não comentar esse facto com Catarina. Tremia, numa mistura de
frio e medo, ligou o aquecimento do carro e fechou momentaneamente os olhos.
Não
falaram durante o resto do caminho, olhavam à volta cada uma rezando para não
encontrarem nada esquisito como aquela velha senhora profetizara. Seguindo as
suas indicações rapidamente chegaram a casa de Elisabete, que as esperava.
- Finalmente. Não me digam que se perderam?
-
Nem me digas nada. Se não fosse uma velha senhora de uma casa lá em baixo no
caminho não daríamos com a tua.
-
Qual velha senhora? Qual casa?
-
Não comeces? - Catarina fechou o carro colocando as chaves no bolso das calças.
- Já sabemos que dia é hoje e já ganhámos para o susto.
-
Não me estou a meter com vocês. Mas na estrada que vem da vila até minha casa
não existe nenhuma casa.
-
Claro que existe. Tem um portão de madeira quase podre, uma decrépita casa de
pedra e muita vegetação a tapá-la, mas existe. Nós vimo-la. Estou a dizer-te
que foi a sua habitante que nos ajudou a chegar aqui.
Elisabete
olhava-as espantada.
-
É verdade que se conta na vila que há muitos anos atrás viveu aqui uma bruxa.
Numa casa exactamente como a descreveste, de pedra com um portão de madeira,
mas não passa de uma lenda.
-
Estou a dizer-te que a vimos. Que falámos com ela - Catarina já começava a
ficar irritada com aquela conversa.
-Vamos
entrar, aquecer-vos e enquanto tomam qualquer coisa eu conto-vos o que sei
dessa lenda.
Sentaram-se
no sofá perto da lareira que já ardia aquecendo a sala.
-
Então conta lá a história da bruxa que aparentemente inventámos. - Catarina
continuava desagradada com a ideia de que tinham imaginado o que lhes
acontecera.
-
Conta-se que existiu uma jovem mulher de uma beleza estonteante que vivia na
vila e foi acusada de bruxaria. Para evitar que a perseguissem refugiou-se aqui
em cima na serra onde viveu até à velhice nunca mais contactando com ninguém. Os
habitantes da vila vieram, diversas vezes à serra à sua procura, tinham receio dela,
queriam prende-la, mas nunca a conseguiram encontrar diz-se que a sua casa estava
protegida por um feitiço e só podia ser vista por almas puras que procurassem
ajuda ou por outras bruxas. Consta ainda que todos os anos na noite de trinta e
um de Outubro, à meia-noite, na hora em que o véu que separa os mundos é mais
fino, na noite em que se celebram e honram os nossos antepassados, na celebração
do grande Sabbat, aparece para acender fogueiras pela serra para ajudar a
conduzir as almas para o seu eterno descanso. Diz-se ainda que se faz
acompanhar de um gato preto que personifica a sabedoria, a energia e a
proteção.
-
Estou toda arrepiada - Catarina já se encostava ao canto do sofá segurando os
joelhos de encontro ao peito.
- Como é que sabes isso tudo
Elisabete? - Marta olhava-a curiosa.
- Ouvi dizer.
- Para lá com essa brincadeira que
já estamos suficientemente assustadas. - Catarina olhava para Marta procurando
o apoio dela.
- Verdade ou não nesta noite acontece
uma coisa curiosa na serra, venham comigo lá fora que eu mostro-vos.
Caminharam pelo jardim até uma
elevação de onde conseguiam ver a serra em todo o seu esplendor. Por todo o
lado brilhavam várias fogueiras nos mais diversos locais e para dentro destas
pareciam caminhar vários vultos brancos.
Não queriam acreditar no que os seus
olhos viam.
-
Minhas amigas, começo a acreditar que as bruxas existem.
Esta era a longa noite, a noite das
almas, a noite em que se honram os que partiram. Era uma noite em que se
celebrava o fecho de um ciclo e o início de outro. O medo que sentiam desaparecera,
era bom pensar que a vida era muito mais do que pensavam conhecer. Parecia que ali
também elas tinham a oportunidade de recomeçar, de acreditar.
Um gato negro olhava-as atentamente
de cima do muro.
Na realidade todas elas estavam ali unidas
naquela noite por um elo que lhes era desconhecido, eram netas da bruxa da
serra, e estavam ali com uma finalidade mas ainda não o sabiam.
MBarreto
Condado