Confúcio disse-o. Lembrei-me disto de madrugada,
quando saí da minha cama muito antes do sol nascer para fazer uma reportagem
junto dos pescadores de Peniche. 12 horas depois regressei a casa, cansada, mas
feliz. Não dei pelo tempo passar. Comparo esta nova Ana re-apaixonada pelo que
faz com aquela Ana que ficou no desemprego e se sujeitou a praticamente tudo
para levar um salário para casa. Costumo dizer que só me faltou vender droga…ou
prostituir-me. Se bem que no que toca à prostituição não tenho a certeza de que
não o tenha feito. Afinal, mais do que o
corpo senti-me muitas vezes a vender a alma…ao diabo e a quem me pagava o
mísero salário no final do mês. Nessa altura, quer tivesse que começar o meu
dia de trabalho às 8 ou às 3 da tarde, o sacrifício era o mesmo. Acordava
sempre zangada comigo e com a vida. Detestava o que fazia. Comecei a
detestar-me a mim mesma, porque me vejo sempre sendo o que faço. A minha
revolta nunca teve muito a ver com o trabalho em si, devo dizê-lo. Tinha mais a
ver com quem tinha de lidar para desempenhar tais funções. Apanhei com algumas
pessoas boas, pessoas simpáticas, educadas e competentes. Mas apanhei com
muitas mais que por certo se sentiam tão frustradas como eu, mas que ao
contrário de mim que me aliviava da insatisfação diária, com 30 minutos de
choro por dia (no recato do lar), elas descarregavam a frustração nos colegas,
e/ou subalternos. Eu tentei sempre manter a calma. Sabia que me tinha
transformado numa panela de pressão ambulante e que a qualquer momento poderia
rebentar, mas pelo menos eu também sabia, no meu íntimo eu sabia, que tudo
aquilo para mim era temporário, que havia de vir o dia em que me voltaria a
sentir viva, que voltaria a sentir-me nos trilhos, no caminho que é o meu,
porque mais nenhum outro eu nasci para percorrer. Tendo isto em mente, muitas
vezes senti pena dessas pessoas com quem me era insuportável interagir. Que
vida triste elas levam. Eu, pelo menos, sempre intuí que um dia voltaria a ser
eu. Elas nunca serão outra coisa que não gente equivocada, que não sabe para o
que nasceu, que não vai atrás de um sonho, que não sabe o que é realização. São
gente que não desabrocha, não cresce, não se explora, não se ilumina, não se
conhece, não descobre o seu potencial. Ao contrário, definham, azedam,
encolhem, escurecem, ignoram-se, anulam-se.
Se tiver que voltar a trabalhar fora do meu mundo,
trabalharei, claro. E darei o meu melhor. Mas o meu melhor para o que não me
apaixona será sempre um bom prato, mas não um gourmet. Será uma garrafinha de
Luso, boa o suficiente para matar a sede, mas nunca uma Evian ou uma Perrier. Não
serei feliz. Não porei amor no que fizer, porque para se pôr amor no que se faz
é preciso amar o que fazemos. A relação que tenho com o trabalho pode
comparar-se à minha relação com os homens. Eu amei realmente 1 homem e no limite
posso amar alguns homens, mas não posso amar todos os homens. Sei que existem
pessoas que se dividem entre o que são e o que fazem. Eu nunca me consegui dividir.
Eu não faço uma coisa e sou outra. Eu sou o que faço. Então eu sou escrita, eu
sou palavras, eu sou imaginação, eu sou crónica, eu sou reportagem, eu sou
escritora, eu sou jornalista. Não sei ser outra coisa. Não quero ser outra coisa,
porque não sei fazer outra coisa nem quero fazer outra coisa. Tudo o resto,
mais ou menos prestigiante, melhor ou pior pago, nem entra em cogitação. Não
sou eu.
Ana Kandsmar
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