sexta-feira, 27 de outubro de 2017

OPINIÃO | Guardião de Sonhos | MARGARIDA VERÍSSIMO

A bola rolava a grande velocidade, no piso de relva sintética, quando foi intersetada pelo adversário. No seu meio campo o perigo era eminente e o pontapé forte, certeiro e inesperado apanhou todos de surpresa. Já a claque adversária, constituída pelos pais e irmãos mais novos dos jovens jogadores, gritava golo quando no último segundo aquela mão bem esticada, num voo firme, desvia a bola e nega o empate à equipa contrária. A sua concentração, capacidade de reação, treino e preparação física permitiram que, ao ver a bola partir do pé do jogador adversário, se lançasse num voo até ao canto superior da baliza e no último instante desviasse a bola da rota de golo, contra todas as expectativas. A alegria e orgulho estampados no seu rosto contrastam com o olhar de frustração do jovem jogador que desferiu o golpe quase fatal. A sua equipa mantém-se em vantagem no marcador e a probabilidade de ganharem o jogo é cada vez mais forte.

Apesar da alegria permanece atento e concentrado, ele sabe que basta um deslize seu para deitar tudo a perder. Não vão interessar as bolas falhadas pelos colegas, os golos que não foram marcados pela sua equipa, se falhar será o responsável pelo empate ou pela derrota…será responsabilizado e criticado pela sua prestação, apesar da defesa incrível que protagonizou. Ele sabe que é naturalmente assim. Sente-se valorizado, apoiado e acarinhado pela equipa, pelos pais e pelos treinadores, mas tem consciência que a sua posição em campo é a mais ingrata.

Faz parte de um coletivo, mas é na diferença que se destaca. A diferença no equipamento, na forma de jogar, do direito exclusivo de tocar a bola com a mão, a diversidade de treino e o privilégio de ter 2 treinadores! Mas mais do que as distinções físicas e imediatamente identificáveis, é na diferença psicológica que se deve superar. O ser diferente numa equipa de iguais e a responsabilidade, nem sempre partilhada, de ser guardião do bem mais preciso que se pretende inviolado, acresce, à adrenalina própria da competição, a carga psicológica de não poder falhar.

Defende uma equipa, mas, em caso de superioridade da mesma, sentirá a solidão em campo, por isso sobe, aproxima-se dos colegas, da bola, do jogo e do meio-campo, para arrepio de algum público. Por essa razão deseja sempre que a equipa adversária seja forte, que lhe dê ação, que o inclua no jogo, que não o deixe só, no campo. Pertence a uma equipa, mas treina apartado, com treinador e exercícios próprios. Sente-se especial, privilegiado: tem um domínio em campo que mais ninguém tem, tem poderes em campo que mais ninguém tem, mas tem também o peso da responsabilidade que mais ninguém tem.

Sempre que entra em campo sabe que tem de estar preparado, como qualquer um tem, mas mais do que qualquer um tem de ser veloz, forte, ágil, certeiro, decidido, concentrado, destemido e líder. Mesmo não sendo capitão tem de ser sempre comandante.

A bola continua a rolar na sua área, o defesa desvia a trajetória da bola, sai de campo e é marcado pontapé de canto para a equipa adversária. Um jovem posiciona-se no canto do campo, compõe a bola junto às marcações e chuta-a com força e em jeito, fazendo um arco direto à baliza. Com uma energia impulsionadora tremenda, salta mais alto que qualquer outro dos jogadores e soca a bola para longe. Os seus punhos fechados e protegidos pelas luvas socam a bola com a mesma força, determinação e raiva com que um pugilista soca o seu opositor, defendendo a sua honra, o seu sonho e a sua vitória.

O árbitro apita, finalmente, termina o jogo. Hoje cumpriu o seu objetivo, o objetivo da sua equipa. Defendeu bem a baliza, mas mais do que a baliza, defendeu o sonho da equipa, o sonho de vitória.
















Margarida Veríssimo

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