Odeio o teu andar silencioso em
corpos sãos, gente de boa índole e de coração que apanhas à traição.
Odeio que não dês sinais, que não
escrevas uma cartinha a dizer que vens e que ainda que ninguém te queira, não
te vais.
Odeio-te, filho da puta! Odeio
que te faças presente na vida da gente e que coloques um abismo à nossa frente.
Odeio que nos roubes os sonhos e
a esperança, a felicidade de acordar os dias sentindo que o mundo ainda nos
pertence.
Odeio que nos empurres para
dentro de uma redoma negra e fria, um desolador recôndito que só tem os teus
olhos, igualmente negros, igualmente frios.
Odeio que nos dês uma bata branca
e uma cama de hospital, remédios amargos e vómitos, tudo o que poderia correr
bem a correr mal.
Odeio que o mundo se afaste e
continue a existir sem nós, e que enquanto tentamos ganhar-te nos sintamos tão
sós.
Odeio que o relógio não pare e avance em
direção à morte e que em todas as horas do dia amaldiçoemos a nossa sorte.
Odeio que te alastres e que tomes
conta do que ontem não te pertencia e que cheios de ti fiquemos de alma vazia.
Que te faças hóspede sem convite,
guardião de um templo que não é teu, que roubes a fé ao que crê e entregues
Deus ao ateu.
Odeio-te os tentáculos que se
estendem, odeio-te os medos que se acendem, os fantasmas que nos saltam do
armário, que nos vires a vida ao contrário.
Odeio-te o secretismo, às
escondidas o malabarismo, que sejas um reles cobarde que entra em nós sem
alarde.
Odeio-te pelo que nos fazes. Pelo que nos tiras.
Odeio-te porque o ódio é a única coisa de que somos capazes quando oramos e
ninguém nos escuta, odeio-te pelos que amei e perdi, pelos que perderei para
ti, odeio-te cancro, filho da puta!
(Pela Milena, pelo Keith, pelo
João, pelo Pedro e por todas as vítimas de cancro)
Ana Kandsmar
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