A chegada de um novo ano é propícia a balanços do ano que finda e a grandes expectativas relativamente ao ano que agora começa. Trata-se de um lugar-comum, mas é algo que está tão programado na nossa cultura que damos por nós, ainda que inconscientemente, a deixar-nos arrastar para tal ilusão anual de um futuro melhor.
Com alguma ingenuidade pensamos sempre, com mais ou menos variantes, coisas deste género: desta é que vai ser! Vou cumprir as metas que tracei! Vou conseguir realizar velhos sonhos! Vou alcançar a desejada estabilidade profissional! Vou arriscar e ganhar! Vou cortar relações com todos aqueles que só se lembram de mim quando precisam e porque precisam! Vou fazer um detox mental! Vou, finalmente, escrever o livro que ando há anos a adiar! Vou ter perfeitamente em dia as listas de leituras, séries televisivas e filmes! Vou disciplinar-me e não trazer trabalho para casa, libertando mais tempo para estar com a família e amigos! Vou reaproximar-me de familiares e amigos que tenho negligenciado em atenção! Vou retomar contacto com aqueles amigos da faculdade que, há anos, não vejo!
Certamente, numa lista tão extensa, vamos acreditar que algumas das metas podem e vão ser alcançadas, mas nunca porque as planeámos ou porque tenhamos em mãos o mágico comando à distância que permite, com uma simples pressão no botão certo, controlar a nossa vida, a nossa disponibilidade, a conjuntura familiar, relacional e profissional de cada um de nós,
Nunca vamos conseguir libertar-nos da pressão e do ritmo vertiginoso de vida que a sociedade, e nós que nela estamos inseridos, imprimimos às nossas pobres existências.
Diariamente, um cruel e perverso determinismo sobrepõe-se e asfixia o nosso livre arbítrio, leva-nos a aceitar, em regime de voluntariado à força, as regras do socialmente correcto (coisas tão banais como aceitar a mudança da hora, cumprimentar quem connosco se cruza na rua, sorrir em público e calar a angústia que possa oprimir-nos porque "chorar é feio", evitar contestar algumas instituições, mesmo quando falham redondamente, porque podemos sofrer retaliações, atender o telemóvel ou abrir a porta quando a campainha começa a retinir no exacto momento em que nos sentámos no sofá com o nosso livro do momento na mão).
Fica-me a assombrar a eterna dúvida: valerá a pena mudar de ano? Ou mudar pode piorar mais o contexto actual?
Devíamos ter o direito de optar por deixar ou não que os anos passem. Eu continuo a achar que o ano novo é a parte ilusória e visível de uma conspiração obscura onde tudo o que pagamos aumenta e, consequentemente, o pouco que ganhamos diminui.
A ilusão está em, inevitavelmente, reunirmos em nós as forças da esperança de que tudo melhore e mude. Ou muito me engano, ou tudo tende a mudar, sim, para pior, pelo menos à partida (assim de repente, vão subir os combustíveis, o preço dos transportes, a conta da luz, a conta da água, vivemos num país onde a expressão "Estado de Direito Democrático" é letra morta, pelo menos no que diz respeito à prática de diversas profissões liberais, e já agora também gostaria de perceber o que se entende hoje por "profissão liberal") o problema é que só saberemos quando estivermos a olhar para trás no habitual balanço do que passou.
Em suma, controlamos tão pouco ou nada as teias que tecem o nosso destino, que livre, livre, e por enquanto também isento de tributação fiscal, só o nosso pensamento, e a nossa capacidade de evasão através de actividades que nos permitam manter o equilíbrio psicológico num pais tão sui generis como o nosso (e sui generis nem sempre pelos melhores motivos).
Sonhar, desejar, projectar podem ser soluções, quanto à concretização, só o tempo o dirá!
Ousem sonhar e, já agora, Feliz Ano Novo!
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