Quem tem contacto com crianças e adolescentes acaba por construir o seu olhar muito próprio acerca das perspectivas de entretenimento, atitudes, desempenho escolar e esquema de valores dos jovens e dos seus pais ou encarregados de educação, podendo esta experiência ser adquirida através da observação mais ou menos casual, ou ainda por ligações familiares, de amizade ou profissionais.
Não generalizando, e aceitando, desde já, louváveis excepções, devo referir que, de um modo geral, as gerações mais jovens vivenciam uma nítida crise de valores, e tal é fácil de concluir se compararmos as nossas infância e juventude com as actuais.
Tomemos como primeiro exemplo o desempenho escolar em termos de resultados e de atitudes e comportamentos perante pais ou encarregados de educação, professores, auxiliares de acção educativa e os pares, e logo encontramos diferenças abissais entre o modo como nos comportávamos nós enquanto filhos e alunos, e o modo como hoje se comporta grande parte dos jovens nesses mesmos papéis sociais.
Talvez porque a tecnologia era muito mais rudimentar e menos envolvente, e os meios mais sofisticados de entretenimento eram menos acessíveis à classe média (quem se lembra do célebre ZX Spectrum, e dos seus jogos em cassetes que tinham de ser utilizadas através de um gravador, e o televisor era o écran de computador?) também porque o ritmo de vida era menos acelerado, havia mais disponibilidade para o convívio pessoal, o ambiente era também mais propício a levar facilmente um jovem a interessar-se pela leitura e a conversar com a família.
O sentido de respeito pelos mais velhos estava interiorizado de tal forma nas nossas mentes, que por vezes, um simples olhar era o suficiente para travar algum disparate próprio da tenra idade. Na escola, os professores e os auxiliares de acção educativa ( então chamados de "contínuos") conseguiam conquistar o respeito e até a admiração da maioria dos alunos, e consequentemente, as gerações dos anos 70, 80 e 90 têm uma visão muito diferente das atitudes aceitáveis e não aceitáveis no meio escolar, ou, de um modo geral, na maneira de conviver com as gerações anteriores.
A disciplina na escola era factível, não havia cadernetas do aluno, os pais podiam dirigir-se a qualquer professor com o qual precisassem de falar ou esclarecer dúvidas, ou mesmo contestar algum sentimento de injustiça para com os seus educandos escrevendo um simples recado no caderno, ou no teste, ao qual o professor respondia. E o mesmo era aplicável ao professor. Os casos de indisciplina ( que existiam, mas em menor quantidade do que hoje em dia, eram confiados à direcção das escolas, e só o peso da expressão "direcção" era, muitas vezes, o bastante para dissuadir naturalmente alguns atrevimentos).
Em termos de linguagem, usar calão, ou vernáculo, era muito menos usual principalmente no ensino primário ( hoje designado primeiro ciclo do ensino básico) e era mesmo inimaginável para a maioria das crianças que davam os primeiros passos na sua aprendizagem.
Hoje é fácil encontrar conversar entre crianças do 1º Ciclo que então fariam corar as próprias pedras da calçada. Em toda a escolaridade, os professores eram vistos como figuras de autoridade, e embora nem todos fossem adorados, a discordância com estes raramente era manifestada com claro e ostensivo desrespeito, o mesmo podendo dizer-se do relacionamento com familiares mais velhos ( por exemplo, avós ou bisavós), pois havia um julgamento social negativo nítido relativamente a quem era "mal comportado".
Era impensável nestes tempos dizer uma asneira e não ser repreendido severamente (obviamente também com excepções, mas o que então eram excepções correspondem hoje, lamentavelmente, à regra).
As crianças hoje usam vernáculo com mesma displicência com que dizemos um simples "Bom dia" ao entrarmos num local público, contestam frontalmente a autoridade dos adultos ( sejam pais, avós, professores, vizinhos, explicadores ou outros), e mais grave, muitas delas são autênticos pequenos ditadores, com hábeis e eficazes capacidades de manipulação dignas de causar inveja ou admiração junto de quaisquer candidatos a líderes políticos em regimes autocráticos ( em muitas famílias as crianças ou jovens têm sempre razão, têm autonomia de decisão que chega mesmo a sobrepor-se à vontade dos pais, e estes cedem, ou porque estão em negação e se recusam a ver o óbvio, ou porque estão tão exaustos e tão imersos nos seus próprios problemas e afazeres domésticos e profissionais que se demitem inconscientemente de contestar essa nova figura que poderemos apelidar de "suprema autoridade filial", ou porque estão separados do outro progenitor e receiam, ao impor autoridade assumir o papel de "maus da fita" para os seus rebentos.
O desfasamento dos programas escolares da realidade dos alunos propicia também um desempenho abaixo do expectável, porque convenhamos que até nós adultos, conseguimos perceber que há um sem número de programas escolares pouco ou nada motivadores, em especial, se estivermos perante casos especiais de crianças que podem ser sobredotadas ou, ao invés, ter reais dificuldades de aprendizagem.
Quando há uns anos se aproximava o 12º ano, a maioria dos jovens já tinha, pelo menos, algumas ideias acerca do curso superior que queria tirar, hoje a maioria dos alunos está ansioso por acabar o ensino obrigatório, e estamos perante uma geração que parece andar perdida, sem ambições a não ser tornar-se rico e famoso sem grande esforço (veja-se, a título de exemplo, a maioria das pessoas que encontramos a concorrer em reality shows que revelam precisamente a falta de cultura e de valores que antes estavam bem presentes).
Muitas vezes fico seriamente alarmada com as expectativas e os comportamentos que encontro nos mais jovens. E o leitor já pensou nisto?
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