segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

CRÓNICA | Abandono | VANESSA LOURENÇO


Ela tinha-o deixado e não voltaria. Dos olhos cansados, adornados de profundas covas em resultado das excessivas noites sem dormir, transbordava a inquietação e o imerecimento daqueles que são abandonados por alguém que não deixa rasto algum. Ele não valia nada, porque ela achava que ele não valia nada. E até o apartamento que ambos tinham partilhado tinha de súbito sido reduzido a um esqueleto sem vida, agora que ela tinha levado consigo tudo o que o iluminava.

Bateu a porta com força e desceu, galgando os lanços de escadas do prédio envelhecido, com a determinação de quem espera a todo o instante acordar de um sonho mau. Chegou junto da porta da rua, envidraçada e parou. Durante uns instantes, olhou através dela para o mundo lá fora e subitamente, tudo lhe pareceu demasiado grande, avassalador. Hesitou, e durante um instante que pareceu durar uma eternidade ficou apenas ali, em suspenso. Mas no instante seguinte tudo ruiu: deixou-se cair de joelhos no átrio escurecido da escada e cobriu a face com ambas as mãos, os olhos cerrados com força, num esforço inútil para conter o grito que logo em seguida ecoou pelos andares do prédio e fez levantar voo os pombos que preguiçosamente arrulhavam ao sol lá em cima, no telhado. Que o ouvissem, que zombassem dele. Já não queria saber.

Abriu vagarosamente os olhos e a primeira coisa que percebeu, foi que tinha encharcadas as palmas das mãos. Limpou-as demoradamente nas calças e através dos olhos turvados pelas lágrimas, apercebeu-se da segunda coisa: havia um pequeno vulto do lado de fora da porta, observando através do vidro. Esfregou os olhos com as costas das mãos, fungando, levantou-se e sacudiu as calças com as mãos ainda húmidas. Olhou de novo e franziu o sobrolho: era um gato. Um grande gato branco com manchas amarelas e castanhas. Seria uma gata? Lembrava-se vagamente de ter lido algures, que os gatos tricolores eram normalmente fêmeas. Riu de si próprio. O que lhe importava isso? Avançou para a porta de vidro e abriu-a, esperando que o pequeno animal se assustasse e desaparecesse na rua, mas o gato não fugiu. Pensou em lhe acariciar o lombo felpudo, mas ocorreu-lhe que com as mãos ainda molhadas iria ficar com elas cheias de pêlo. Conteve o gesto e avançou pela rua, deixando o gato para trás. De mãos nos bolsos, percorreu as ruas que tão bem conhecia e pensou, com um sorriso triste, que tinham perdido toda a familiaridade. Em breve suspirou e mecanicamente regressou ao prédio onde morava, de olhos colados aos passos arrastados. Quando se aproximou novamente da entrada do prédio e retirou do bolso das chaves, sem se deter, deu subitamente um salto para trás: por muito pouco não tropeçara no gato que ainda se mantinha junto da porta, onde o tinha deixado algum tempo antes. Porque não se tinha ido embora? Baixou-se e, desta vez, acariciou a cabeça do gato, passando o polegar na testa macia e abraçando com o anelar e o dedo minimo o queixo felpudo. Este (ou seria esta?) ergueu lentamente a cabeça e ronronou, fechando os olhos. Ele não era nenhum expert em gatos, mas depressa percebeu que algo não estava bem: tentou erguer o gato do chão e o seu imenso corpo peludo ficou hirto, o que se fez acompanhar de um gemido baixinho. 

Alarmado, não perdeu mais tempo: com o gato nos braços, galgou no sentido inverso as escadas do prédio e entrou em casa. Pousou com cuidado o gato no sofá, afastou de par em par os cortinados das janelas para que entrasse luz e deu-lhe água. De seguida correu a tomar um banho, vestiu-se e rumou ao veterinário mais próximo.

Assim que chegou a sua vez, explicou detalhadamente o que tinha acontecido, apenas para reparar que nos lábios da veterinária se desenhava lentamente um sorriso. Antes que a pudesse questionar, ela disse:

- Infelizmente muita gente teria ignorado o sofrimento deste animal, você é um homem bom. Obrigado.

Apanhado de surpresa, engoliu em seco e entreabriu os lábios para responder, mas deles não saiu nenhum som. Ele era um homem bom?

De regresso a casa, a gata malhada já fazia parte da sua familia. Não voltaria a sofrer nas ruas e precisava de medicação, por isso não poderia ser de outra maneira. Assim que entrou no apartamento com a gata aninhada nos braços e o saco da farmácia pendendo-lhe de um dos pulsos, porém, estacou. Esquecera-se de que tinha afastado os cortinados, e o apartamento estava aquecido e iluminado pela primeira vez em muito tempo. Olhou demoradamente a gata que tinha ainda nos braços e ela devolveu-lhe o olhar, um olhar brilhante... e grato. Sem tirar os olhos dos dela, sentou-se no sofá e deixou cair o saco. Ainda dorida, ela ajeitou-se com as patas estendidas no peito dele e ronronou. Ele suspirou e disse ao animal:

- A doutora disse que eu sou um homem bom porque não te ignorei..., mas foste tu que me encontraste. E agora, o meu apartamento voltou a ter luz, voltou a ser a minha casa. A nossa casa.

Desviou os olhos dos dela por um instante, sentindo-se envergonhado, antes de acrescentar:

- E eu não tomava banho há algum tempo...

A gata pareceu sorrir e esticou-se para lhe tocar o queixo com o narizinho rosado, como se compreendesse. Acariciou-lhe demoradamente a testa com o polegar, a ternura a transbordar dos olhos de ambos com uma intensidade capaz de fazer do mundo um lugar melhor. Por fim, sorrindo, ele disse à gata malhada:

- A ser verdade que te salvei a vida, tu não fizeste menos por mim. Serás tu um anjo que caminha em quatro patas?

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