Ela
tinha-o deixado e não voltaria. Dos olhos cansados, adornados de profundas
covas em resultado das excessivas noites sem dormir, transbordava a inquietação
e o imerecimento daqueles que são abandonados por alguém que não deixa rasto
algum. Ele não valia nada, porque ela achava que ele não valia nada. E até o
apartamento que ambos tinham partilhado tinha de súbito sido reduzido a um
esqueleto sem vida, agora que ela tinha levado consigo tudo o que o iluminava.
Bateu
a porta com força e desceu, galgando os lanços de escadas do prédio envelhecido,
com a determinação de quem espera a todo o instante acordar de um sonho mau.
Chegou junto da porta da rua, envidraçada e parou. Durante uns instantes, olhou
através dela para o mundo lá fora e subitamente, tudo lhe pareceu demasiado
grande, avassalador. Hesitou, e durante um instante que pareceu durar uma
eternidade ficou apenas ali, em suspenso. Mas no instante seguinte tudo ruiu: deixou-se
cair de joelhos no átrio escurecido da escada e cobriu a face com ambas as
mãos, os olhos cerrados com força, num esforço inútil para conter o grito que
logo em seguida ecoou pelos andares do prédio e fez levantar voo os pombos que
preguiçosamente arrulhavam ao sol lá em cima, no telhado. Que o ouvissem, que
zombassem dele. Já não queria saber.
Abriu
vagarosamente os olhos e a primeira coisa que percebeu, foi que tinha
encharcadas as palmas das mãos. Limpou-as demoradamente nas calças e através
dos olhos turvados pelas lágrimas, apercebeu-se da segunda coisa: havia um
pequeno vulto do lado de fora da porta, observando através do vidro. Esfregou
os olhos com as costas das mãos, fungando, levantou-se e sacudiu as calças com
as mãos ainda húmidas. Olhou de novo e franziu o sobrolho: era um gato. Um
grande gato branco com manchas amarelas e castanhas. Seria uma gata?
Lembrava-se vagamente de ter lido algures, que os gatos tricolores eram
normalmente fêmeas. Riu de si próprio. O que lhe importava isso? Avançou para a
porta de vidro e abriu-a, esperando que o pequeno animal se assustasse e
desaparecesse na rua, mas o gato não fugiu. Pensou em lhe acariciar o lombo
felpudo, mas ocorreu-lhe que com as mãos ainda molhadas iria ficar com elas
cheias de pêlo. Conteve o gesto e avançou pela rua, deixando o gato para trás. De
mãos nos bolsos, percorreu as ruas que tão bem conhecia e pensou, com um
sorriso triste, que tinham perdido toda a familiaridade. Em breve suspirou e
mecanicamente regressou ao prédio onde morava, de olhos colados aos passos
arrastados. Quando se aproximou novamente da entrada do prédio e retirou do bolso
das chaves, sem se deter, deu subitamente um salto para trás: por muito pouco
não tropeçara no gato que ainda se mantinha junto da porta, onde o tinha
deixado algum tempo antes. Porque não se tinha ido embora? Baixou-se e, desta
vez, acariciou a cabeça do gato, passando o polegar na testa macia e abraçando
com o anelar e o dedo minimo o queixo felpudo. Este (ou seria esta?) ergueu
lentamente a cabeça e ronronou, fechando os olhos. Ele não era nenhum expert em
gatos, mas depressa percebeu que algo não estava bem: tentou erguer o gato do
chão e o seu imenso corpo peludo ficou hirto, o que se fez acompanhar de um
gemido baixinho.
Alarmado, não perdeu mais tempo: com o gato nos braços, galgou
no sentido inverso as escadas do prédio e entrou em casa. Pousou com cuidado o
gato no sofá, afastou de par em par os cortinados das janelas para que entrasse
luz e deu-lhe água. De seguida correu a tomar um banho, vestiu-se e rumou ao
veterinário mais próximo.
Assim
que chegou a sua vez, explicou detalhadamente o que tinha acontecido, apenas
para reparar que nos lábios da veterinária se desenhava lentamente um sorriso. Antes
que a pudesse questionar, ela disse:
-
Infelizmente muita gente teria ignorado o sofrimento deste animal, você é um
homem bom. Obrigado.
Apanhado
de surpresa, engoliu em seco e entreabriu os lábios para responder, mas deles
não saiu nenhum som. Ele era um homem bom?
De
regresso a casa, a gata malhada já fazia parte da sua familia. Não voltaria a
sofrer nas ruas e precisava de medicação, por isso não poderia ser de outra
maneira. Assim que entrou no apartamento com a gata aninhada nos braços e o
saco da farmácia pendendo-lhe de um dos pulsos, porém, estacou. Esquecera-se de
que tinha afastado os cortinados, e o apartamento estava aquecido e iluminado
pela primeira vez em muito tempo. Olhou demoradamente a gata que tinha ainda
nos braços e ela devolveu-lhe o olhar, um olhar brilhante... e grato. Sem tirar
os olhos dos dela, sentou-se no sofá e deixou cair o saco. Ainda dorida, ela
ajeitou-se com as patas estendidas no peito dele e ronronou. Ele suspirou e
disse ao animal:
-
A doutora disse que eu sou um homem bom porque não te ignorei..., mas foste tu
que me encontraste. E agora, o meu apartamento voltou a ter luz, voltou a ser a
minha casa. A nossa casa.
Desviou
os olhos dos dela por um instante, sentindo-se envergonhado, antes de
acrescentar:
-
E eu não tomava banho há algum tempo...
A
gata pareceu sorrir e esticou-se para lhe tocar o queixo com o narizinho
rosado, como se compreendesse. Acariciou-lhe demoradamente a testa com o
polegar, a ternura a transbordar dos olhos de ambos com uma intensidade capaz
de fazer do mundo um lugar melhor. Por fim, sorrindo, ele disse à gata malhada:
-
A ser verdade que te salvei a vida, tu não fizeste menos por mim. Serás tu um
anjo que caminha em quatro patas?
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