O cão velho
atravessou-se no meu caminho e informou-me educadamente que seria da sua
autoria a minha primeira crónica neste jornal. Não que tenha dito muito para me
convencer, era de poucas palavras. Trancou nos meus os seus olhos parcialmente vidrados
e ramelosos, e disse apenas:
- Tens
alguma ideia melhor?
Durante
alguns segundos quis contrariá-lo e apresentar-lhe uma alternativa digna de um
filme de cinema ou de uma história daquelas que alimenta a fogueira uma noite
inteira, mas não me surgiu nada. Frustrada e irritada com a impertinência,
devolvi-lhe:
- Aposto
que tens pulgas.
Inclinou
ligeiramente a cabeça e estreitou os olhos, e a infantilidade da minha resposta
atingiu-me como uma paulada nas costas. Envergonhada, mas sem querer dar parte
fraca, revirei os olhos e acrescentei:
- Se
tiveres pulgas, posso ajudar-te com isso.
Ergueu um
sobrolho grisalho e escancarou os olhos, antes de rebentar numa gargalhada. Eu
nem sabia que os cães se podiam rir e senti-me corar. Rodou sobre si mesmo
várias vezes e por fim lançou as patas dianteiras às minhas pernas, de uma
forma surpreendentemente ágil para um cão velho. Ainda envergonhada,
acariciei-lhe a cabeça por trás das orelhas e sentei-me no chão arenoso à
frente dele. Pousou nas minhas pernas as patas encardidas, munidas de unhas
compridas, e disse-me:
- Aqui tens
a tua primeira crónica. A primeira de muitas.
Surpreendida,
ergui o sobrolho e cruzei os braços sobre as pernas, inclinando-me para a
frente para o ouvir melhor. Perguntei-lhe:
- O que
queres dizer? Não me contaste história nenhuma!
Estreitou
os olhos, mas desta feita não havia uma gota de sarcasmo neles. Apenas
sabedoria, e uma secreta satisfação. Disse-me:
- Existem
outros como tu, não duvides. Seres humanos cujas vidas são salvas e inspiradas
todos os dias pelos animais que amam e se cruzam no seu caminho. Pessoas que
páram na rua para falar com animais desconhecidos, e que partilham os seus
sonhos e anseios com os animais que partilham as suas vidas. Essas pessoas
precisam de saber que fazem parte de um grupo imenso de seres humanos que não
só respeita os animais com quem partilha a vida todos os dias, como lhes
reconhece uma complexidade que a sociedade tarda em lhes atribuir.
Abri a boca
para falar, mas não saiu nenhum som. Ele colocou de novo uma das patas na minha
perna e estreitou os olhos num sorriso. Acrescentou:
- Existem
pessoas que falam connosco e esperam para nos ouvir. É com essas pessoas que
vais partilhar estas crónicas e partilhar sorrisos de reconhecimento, com essas
pessoas que acreditam que por vezes, os maiores tesouros da vida são deixados
nas entrelinhas... e nos são desvendadas por aqueles que caminham em quatro
patas ou nasceram para cruzar os céus com as suas próprias asas.
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