Na semana em que se comemora o amor não podia deixar de
falar nele. No entanto, como gosto de ser diferente, não dissertarei sobre o
amor romântico - já há muitas pessoas a fazê-lo nesta data. Fá-lo-ei sob outra
forma: o amor entre irmãos; aquele que sentimos, por puro apelo dos genes,
pelas pessoas mais diferentes de nós, que, inclusivamente, nos magoam em
diversas fases das nossas vidas e que, inexplicavelmente, continuamos a amar e
a proteger. Esse amor que, às vezes, em momentos cruciais das nossas vidas,
opera grandes e maravilhosas mudanças, verdadeiros milagres.
Em vez da habitual crónica de opinião, apresento-lhes um
pequeno conto de minha autoria que, à semelhança de tantas coisas que escrevo,
tenta alertar as consciências e convido-os, desde já, a opinarem sobre o mesmo.
Os dois irmãos.
Rogério tinha o hábito de a todos reificar. Era algo a
que não conseguia resistir.
O seu irmão Alberto, por outro lado, era completamente o
oposto: homem caridoso e humilde, não se furtava ao ajudouro de quem dele
necessitasse.
Nem se diria que estes dois eram irmãos: eram
completamente diferentes. Até nas feições eram dessemelhantes. Nunca se
imaginaria que eram fruto do mesmo pai e da mesma mãe. Mas eram, nenhum era
adoptado, tinham, portanto, sido ambos incitados aos mesmos valores morais e
culturais. Então porque seriam tão reversos? Ninguém sabia. Era coisa que já
tinha desabrolhado com cada um, aquela que já vem connosco e que nada nem
ninguém muda, era o que era, diziam as gentes da aldeia. E os factos estavam à
vista de todos para quem quisesse ver.
Os feitos opostos eram tantos, que os dois se tornaram
lendas vivas e os contos chegaram a todos os cantos de Portugal. Por todo o
lado, ao longo das suas vidas, se aduziam as muitas estórias destes dois
irmãos. De tal maneira que começaram a tomar a forma de fábulas. Até nas
escolas já serviam de formação às criancinhas; começou a acreditar-se que eram
grandes exemplos do bem e do mal.
Assim foram passando os anos: feitos daqui, contos dali.
Mas um dia algo aconteceu; algo que iria testar todas as bases das suas
estórias.
Rogério adoeceu. Foi minguando, perdendo as forças e um
dia caiu à cama. Chamaram o Senhor Doutor; não era caso para menos: aquele
homem bem fornido e "vaso ruim" cair a uma cama?! Estranho, muito
estranho! O Senhor Doutor disse que ali não o podia tratar, que tinha que o
encaminhar para o hospital distrital. Ora lá foi Rogério transportado de
ambulância, com luzinhas azuis a apagar e a acender e tudo, a caminho do hospital.
O seu humor estava ainda pior: não aceitava aquilo; era um homem saudável,
caramba! Não havia de ser nada ruim, com certeza, ruim era ele - ia pensando
mal convencido.
Depois de uma carrada de exames lá veio o Senhor Doutor
com o ditame: um rim tinha parado - falecido, era o que era - e o outro para lá
caminhava e Rogério já se via com um pé para a cova. Um transplante era o que o
salvaria, dissera o Senhor Doutor.
Ora, sim, um transplante... e quem lhe daria um rim?!,
ninguém gostava ou se preocupava o suficiente com ele para tal sacrifício.
Pela primeira vez em toda a sua vida sentiu-se
pequenino, o mais minúsculo dos seres. Queria, talvez, ter sido de outra forma;
podia ter sido de outra forma. Lembrou-se da sua mãe, quando ainda párvulo, lhe
dizia tantas vezes que a ruindade não traz felicidade à vida de ninguém, que se
colhe os frutos daquilo que se semeia; e o que tinha ele colhido com tanta
malvadez e coração empedernido? Estar sozinho numa cama de hospital com um rim
falecido e outro a falecer, era isso... nada mais.
Estava nestas cogitações com cheiro a morte, quando a
porta do quarto se abriu para deixar passar Alberto. Entreolharam-se em
silêncio e foi o segundo a quebrar aquela ligação quando estendeu a sua mão
para agarrar na do irmão moribundo. Os olhos deste suavizaram-se, já não
aguentando mais tanta dureza interior, e uma lágrima obstinada correu-lhe pela
face pálida. Alberto apertou mais a mão do irmão e disse-lhe que tinha
feito exames e que o ia ajudar: dar-lhe-ia um dos seus rins.
Afinal eram compatíveis, aqueles dois, tão diferentes e
tão iguais como só dois irmãos podem ser.
Rogério disse que não compreendia; porque abdicaria o
irmão de um dos seus rins saudáveis e, ainda por cima, para o ajudar a ele, que
sempre tinha sido mau e indiferente para com a sua pessoa? Alberto sorriu e
respondeu que era, simplesmente, porque eram irmãos; eram família e era para
isso que a família servia também: para os elementos desta se ajudarem uns aos
outros quando assim era necessário; e, além disso, gostava muito do irmão e não
queria que ele morresse.
Rogério sentiu, pela primeira vez, a alegria aquecer-lhe
o coração gelado e permitiu-se saborear a paz e a tranquilidade que isso lhe
trazia. Encarou o irmão de frente e percebeu, finalmente, o significado da
palavra amor. Entendeu que tinha desperdiçado uma vida inteira a comportar-se
como uma besta.
Um dia depois entraram os dois no bloco operatório ao
mesmo tempo: um para dar vida e amor, o outro para os receber. Correu tudo
muito bem e ambos viveram muitos anos. Alberto com a sua habitual bondade e
mimo e Rogério bem encaminhado numa nova vida de coração quente.
As estórias dos dois continuaram a ser contadas por este
país fora, mas aquela que mais gente sabia e contava, por ser tão inspiradora, era
precisamente a que demonstrava a maior prova de amor fraterno que pode existir,
e a mudança que isso tinha operado em alguém que, se dizia, tinha sido, em
tempos, um monstro intratável.
Moral da estória:
se todos nos dispuséssemos a adoptar a atitude de amor
mais frequentemente, o mundo seria muito mais aprazível.
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