A primeira viagem oficial do
Presidente da Republica foi uma romaria ao representante de Deus na
Terra. Acalmem-se os beatos crismados, os moralistas republicanos e
os mata-frades de serviço, que não pretendo teorizar sobre o catolicismo num
país laico. Apenas constatar. Constatado está.
Aqui há uns anos, assisti de longe à penitente e
pedonal peregrinação de um vereador que depois de ser eleito, caminhou da
margem-sul até à Cova de Iria. O autarca peregrino era militante
comunista.
Ambos,
presidente e vereador, foram agradecer a um remoto divino a graça da
acumulação dos votos na urna.
Debaixo das pedras de mil anos de catolicismo romano, que
incluem os duzentos anos de santo-oficio, não foi possível, ainda (e
felizmente!) converter completamente este povo aparentemente submisso. Por mais
que sejam as camadas de asséptica cal sobrepostas no painel de azulejos, não se
conseguiu ainda estripar aquilo a que o racionalismo chama arrogantemente de
superstição. Batizados e confessados, muitos casados pela igreja mas de uma
religiosidade popular politeísta, somos um povo de blasfemos com fé.
Comunistas assumidamente ateus, fazem romagens à
campa da Catarina Eufémia. Os socialistas em cargos oficiais são presença
assídua nas barrocas procissões do Santo Cristo nos açores. Muitos
sociais-democratas fazem questão de, ao domingo, assistirem circunspectos à
santa missa. Os centristas, antes de serem populares já eram católicos
apostólicos.
Quando chega à altura das eleições é um corrupio de
promessas. Para lá das públicas promessas eleitorais, estão as secretas
promessas mágicas e religiosas, negociadas taco a taco com um
qualquer Deus. Há nas vidas, praticas politicas e dos políticos, todo
um registo transversal de recorrência a alianças com o sagrado. Velinhas e
galinhas na encruzilhada para ganhar eleições.
Tudo normal e natural numa terra de milagres. Mas tudo
feito com o pudor e o secretismo necessário à imagem pública do racionalismo
cientifico obrigatório, aqueles que querem ser levados a sério. Seja o que
for que isto quer dizer.
Um presidente de camara do norte do país, todas as
primeiras segundas-feiras do mês, vai dar as sete voltas à capela do senhor da
pedra em Matozinhos. Fá-lo em segredo, naturalmente. Há um conhecido
deputado social-democrata que é visita frequente no gabinete de reconhecido
astrólogo nas Amoreiras..., mas evita falar sobre o que vai lá fazer. Há
uma senhora que foi ministra pelo partido socialista que participa
recorrentemente em rituais de evocação das forças da natureza na noturna beleza
romântica da serra de Sintra. Vai anonimamente e nunca entra nas fotografias do
grupo. Diz quem sabe, que muitos comunistas deixam como vontade explicita
de, após a sua morte, serem cremados e que as suas cinzas sejam depositadas na
quinta da atalaia durante a festa do avante... Se acontece ou não, não sabemos.
Diz-se que uma reunião da direção nacional do BE foi adiada porque duas pessoas
da sua direção estavam num retiro de ayhuasca, procurando no êxtase e nas
visões autoconhecimento e caminho. Diz-se porque as próprias não comentam sobre
isso publicamente.
Nas áreas mais emocionais, como por exemplo, o universo
desportivo, também o mágico e o sobrenatural emergem de mão dada na turbulência
dos confrontos. Ainda com mais intensidade do que na politica. Ou com
igual intensidade mas com menos pudor. No desporto as pessoas são mais genuínas
do que na política e revelam mais de quem são.
Temos em direto um treinador que ganhou o campeonato
europeu, a dizer, que o relacionamento que mantem com Deus (o seu Deus), foi
fundamental para alcançar os resultados desportivos. Acredito que sim, que
foi. E temos os bruxos e os mágicos, que se assumem como fornecedores de
serviços aos clubes. E os jogadores que se benzem antes de entrar em campo. E
as medalhas ao pescoço. E os galos e cordeiros sacrificados antes do jogo. E as
chuteiras benzidas. E os concelheiros espirituais dos jogadores. A memória do
Zandinga é algo que muitos de nós temos presente. E há o polvo vidente que
adivinha resultados.
Dizia o escritor baiano de Itaparica, João Ubaldo Ribeiro,
que se a macumba vencesse jogos de futebol, o campeonato estadual da Bahia
acabava com empate técnico. Provavelmente terá razão.
Claro que enquanto povo, quando falamos nestes temas,
no coletivo do café ou na impunidade das redes sociais, alteramos
entre o jocoso e o criticismo. Mas em privado é diferente... Como povo
bem-comportado que somos, obedecemos à imagem de um institucional catolicismo
tradicional ou a um generalizado ateísmo cientifico social. Estatisticamente,
somos católicos não praticantes, o que quer que seja que isto queira dizer. Mas
para lá da estatística, e quando a incerteza e a adversidade aperta, está todo
um manancial de magia e superstição para nos servir e a mostrar
quem realmente somos:
-- "Doí-me a cabeça, vou pedir a alguém que
me tire o quebranto!"
-- "Amanha, faço exame de condução, acende-me uma
velinha"
-- "Será que ele tem outra? Veja lá aí nas
cartas!"
-- "Caraças, esta equipa é só derrotas, temos de ir à
bruxa".
E vamos às bruxas, às videntes, aos tarólogos e aos
astrólogos.
Desenganados das científicas batas brancas, no silêncio
com que lemos os horóscopos dos jornais, la vamos. E aprendemos onde moram
os chakras. E recorremos aos templos e aos santos. E à corrente de libertação
da quinta-feira. E fazemos promessas e mezinhas. E recorremos a feitiços e
fetiches. E engolimos o corpo de deus materializado em pão. E usamos a figa. E
desviamos os olhos quando nos cruzamos com um carro funerário.
Porque todas as ações e decisões são por si um
infinito universo de possibilidades.
Se um decisor se vai consultar com uma vidente, está a
assumir, mais que não seja perante ele próprio, a sua fragilidade e
falibilidade das suas escolhas. E isso é bom. É bom quando quem exerce o poder,
se apercebe da relatividade e do caracter efémero de todas as ações humanas,
incluindo as suas.
Que venha a magia e o sobrenatural tempere o
insonso cinzento dos dias.
Porque no fundo, bem lá no fundo, só há uma certeza:
todas as certezas estão erradas!
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