A Vanda vive
com o fantasma de uma velhinha. Moram as duas no sétimo direito.
A idosa
apareceu-lhe uns meses depois de se ter separado. Enquanto casada, a angústia
das ausências do marido e os ciúmes com que ardia, não a deixavam ver mais
nada. Depois do Paulo sair de casa, começou a vê-la. Passou a ter mais tempo
para olhar por ela, para ela e para as coisas à volta. A velhinha apareceu a
primeira vez, numa noite de terça-feira, depois da Vanda adormecer no sofá.
Acordou
sobressaltada e com frio no sofá, levantou-se e foi para a cama. Foi então que
percebeu a silhueta recortada na porta da cozinha. Parecia morta e parada atrás
de uma espécie de mesa de ferro sem tampo. A viva não teve medo. Para dizer a
verdade, nem pensou no assunto, caiu na cama e continuou a dormir e a sonhar
com o ex-marido. Só na manhã seguinte se deu conta que a velha não fez parte do
sonho. Ao final da tarde, a fazer o jantar na cozinha e a pensar na silhueta,
ouviu os passos leves ponteados por uma espécie de bengala e sentiu uma
presença a atravessar a sala.
- Devo estar
a ficar maluca.
Estava.
Afinal de contas, estamos todos.
Nessa noite,
a Vanda foi sentar-se a comer a sopa detox adelgaçante que bimby cozinhou.
Sentou-se no seu canto do sofá da sala e fugiu ao mundo em episódios sucessivos
de polícias fortes, lindos, inteligentes e americanos. O fantasma da velha
pairou-lhe na mente mais uns dias.
Passaram umas
semanas. Num sábado de manhã, enquanto aspirava o chão da sala, bem acordada,
voltou a ver a velhota. Inteirinha, nem esfumada nem nada. A imagem completa,
refletida no espelho em frente à porta da rua. Enrugada, magra e pequenina.
Tinha o cabelo encaracolado branco e marcas nos braços de quem passou muito
tempo a soro. Um vestido leve tipo bata clara com flores azuis e um andarilho
de alumínio à frente. Apenas por um instante. Mas viu bem. Curiosamente, mais
uma vez, não se assustou. Continuou a aspirar. Depois comeu uma sandes de
queijo fresco e foi tomar banho.
À tarde
contou à Tita, que faz reiki e é assim meio espiritual.
- Caraças, pá
miúda, temos de ver o que é isso e quem é essa velha!!!
A Tita ficou
entusiasmada e marcaram logo uma “sessão energética” para essa noite. Inclusive
a Tita, até desmarcou um jantar que tinha com um mais-ou-menos namorado.
Ligaram à Maria João, uma amiga da Tita que é mais graduada no Reiki e em anos
de divorciada...
Jantaram as
três frango assado e nem beberam o vinho verde que gostam porque a João, disse
que o espírito podia ficar ofendido. Sentaram-se à volta da mesa da sala,
acenderam umas velinhas redondas dentro de copos (eram as únicas que tinham),
apagaram a televisão e deram as mãos. A João presidia a cerimónia com voz
profunda.
- Espírito
que estás nesta casa, por favor apresenta-te aos teus irmãos vivos e dá-nos um
sinal. (Pausa). Espírito que estás nesta casa, por favor apresenta-se aos teus
irmãos vivos e dá-nos um sinal.
Nada. Nada de
sinal. Nem vozes, nem corrente de ar, nem velas a apagar. Nada.
Apenas um
silêncio frio e desconfortável.
A João repetiu
o apelo, um num tom sério... como aqueles dos carros mal estacionados nas caves
dos hipermercados... mais lento e pesado. É um espírito tímido, concluiu, às
vezes acontece, sobretudo se são mulheres...
Picado por
esta boca algo machista, a alma da velhinha manifestou-se na cozinha. Um copo
cometeu suicídio lançando-se do alto do escorredor onde estava deitado acabado
de lavar e à espera de secar… Um copo grande de água com riscas amarelas. Vidro
grosso partido com estrondo espalhado no chão.
As três vivas
gritaram o susto. A João, depois de recomposta, sorriu conhecedora. Tita ficou
arrepiada e teve de ir a correr fazer xixi. A Vanda levantou-se, acendeu
as luzes e foi varrer o chão da cozinha. Acabou-se ali a sessão.
Decidiram
sair. Foram a um bar ouvir música brasileira e beber umas caipirinhas que
custaram os-olhos-da-cara-mas-um-dia-não-são-dias. A Vanda nessa noite acabou
por ir dormir a casa da Tita que ficou imprópria para conduzir.
Depois da
sessão e do copo a partir-se, a velhinha começou a aparecer mais vezes. Passou
a ser uma presença quase permanente lá em casa. A Vanda foi-se habituando ao
perfume Madeiras do Oriente.
Passaram-se
meses desde que o copo caiu do escorredor.
Uma tarde
destas, cruzou-se com a João na rua.
- Vanda temos
que fazer outra sessãozinha lá em tua casa, mas desta vez, levo uma defumação,
para expulsar o espírito...
A Vanda
indignou-se!
- Expulsar??
Nem pensar nisso, deixa estar a senhora. Faz-me mais companhia que o meu ex e
dá menos trabalho que um gato. Não preciso de lhe andar a ver as mensagens do
telemóvel nem de lhe mudar a areia da caixa!!!! Além disso desde que a Tita
disse no café que tenho um fantasma em casa, a Dona Idália do primeiro frente
deixou de me querer arranjar casamento com o filho que é gay.
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