Deambulava sozinho
por entre becos de ruas salobras, cardumes de ilustres desconhecidos e a
escuridão das noites frias. Dir-se-ia que andava perdido, mas conhecia os
recantos do charco citadino como ninguém. A vida não lhe era farta, mas dela
insistia em se saciar, um dia de cada vez, cantarolando. “É louco”, murmuravam
uns, “canta para fugir da vida”, diziam outros. E o velho, que muitas vezes os
ouvia, não queria saber.
Chamou-lhe Libelinha,
e não foi por acaso: apesar de viver nas ruas, era um homem culto, e sabia que
estes pequenos animais, antes de se tornarem adultos nos céus, nasciam nas
águas turvas dos charcos emoldurados por juncos e ervas altas. Ora ele tinha
encontrado a Libelinha dentro de um contentor de lixo que as chuvas impiedosas
dos últimos dias tinham inundado, e por pouco lhe tinha salvo a vida. Ela tinha
renascido e por gratidão, nunca mais lhe largara os passos.
Habituado à
sua solidão, o velho viu-se pela Libelinha obrigado a renascer, pois que o
diacho da cadela adorava pessoas e depois de escapar da morte quase certa, parecia
determinada em exigir da vida tudo aquilo a que tinha direito: “que simpática,
a cadelinha é sua?”, “tome lá esta ração e não agradeça, ela precisa de crescer
forte!”, “que bonita, onde a encontrou?”. E a todos o velho se via forçado a
responder, notando ao final de uns dias que todas as manhãs ansiava por este
mundo novo que a Libelinha teimava em lhe fazer ver: a cadela parecia acreditar
que ninguém era intrinsecamente mau e que por todos devia distribuir amor, e
esse amor pela vida era tão grande que transbordava do pequeno corpo e inundava
o velho, que de antigo só tinha a casca grossa que lhe cobria os ossos, afinal.
Começaram a
ser conhecidos na vizinhança, e o velho depressa compreendeu que não tinha
salvo a vida da cadela mais do que ela tinha salvo a dele: o barbeiro da
avenida ofereceu-se para lhe fazer barba e cabelo, pois que “onde já se viu,
uma cadelinha tão bonita andar ao lado de um homem descabelado?”; o dono da
pastelaria oferecia-lhe pela manhã um café e um pastel, pois que “tem que andar
bem acordado, não vá a Libelinha perder-se!”; a veterinária municipal insistia
em oferecer vacinas e desparasitantes, pois que “a Libelinha tem que andar
saudável para tomar conta de si!”.
O velho decidiu
então que tinha que estar à altura de todo aquele amor e começou com a
Libelinha a percorrer as ruas em busca de desperdício que pudesse vender: latas
vazias, metal e objectos deitados fora que pudessem ser vendidos em segunda
mão. À tardinha, regressava à pastelaria e ajudava nas limpezas, o que lhe
garantia sempre meia dúzia de tostões e uma refeição quente para si, e para a
Libelinha.
Uns meses
mais tarde, sentado num banquinho de madeira ao lado da porta de um pequeno
anexo cedido gentilmente por um vizinho, e com a cabeça pequenina da Libelinha
entre os joelhos enquanto lhe acariciava o focinho farrusco, pensou de si para
si que ela devia ter planeado tudo aquilo muito antes de se terem encontrado.
Afinal de contas, não podia acreditar que tivessem salvo a vida um do outro por
acaso.
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