segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

CRÓNICA | Prece de um verme | VANESSA LOURENÇO

Enquanto procurava um tema para a crónica desta semana, cruzei-me por acaso com um video nas redes sociais que me despertou a atenção: a história de um cão que, de cada vez que era passeado pela dona, recolhia gentilmente com os dentes pequenas minhocas perdidas no asfalto e as libertava no relvado mais próximo. Dei por mim a pensar que talvez a história por trás deste comportamento peculiar merecesse ser contada, e acredito que terá sido mais ou menos assim:

Desorientada e sem conseguir ver, a pequena minhoca deu por si a ferir o focinho sensivel no asfalto, demasiado sólido para poder ser perfurado por um animal tão pequeno. Achando que se tratava de uma pedra, avançou na esperança de a contornar e regressar às profundezas da terra que tão bem conhecia, mas por muito que avançasse a pedra parecia não ter fim e ficava cada vez mais quente. Prestes a ficar queimada, entrou em desespero e formulou uma prece:

- Terra, mãe que embala todos os seres vivos e lhes permite crescer, se for essa a tua vontade permite que me salve e regresse à segurança do teu seio.

O asfalto cada vez mais quente começava a queimar o pequeno corpo sensivel da minhoca, e nada aconteceu. Continuando sempre a avançar, porém, resolveu tentar de novo:

- Terra, mãe que embala todos os seres vivos e lhes permite crescer, se for essa a tua vontade permite que me salve e me junte às minhas irmãs para continuar o meu trabalho a fertilizar e oxigenar o teu leito.

A resposta tardava em chegar e começava a ser cada vez mais doloroso para ela avançar no asfalto fervente, fustigado pela luz do sol. Contudo, não se podia permitir desistir. Não entregaria a sua vida, que lhe era tão preciosa, sem se encontrar para lá de toda a esperança.

De súbito, os raios de sol deixaram de lhe queimar a pele, e sentiu um corpo húmido pressionar o seu corpo gentilmente. Já desidratada, decidiu que a proximidade da morte lhe estava a provocar alucinações e preparou-se para desistir. Porém, no momento seguinte sentiu que o solo escaldante desaparecia debaixo do seu corpo e que se erguia no ar, liberta da gravidade. Demasiado esgotada para se debater, deixou-se levar e sentiu pela primeira vez a brisa acariciando o esguio corpo cansado. O ar fresco renovou-lhe os sentidos e percebeu que estava a ser carregada, algo ou alguém a tinha erguido acima da morte certa. No momento seguinte, o cheiro fresco e que tão bem conhecia da erva molhada apoderou-se-lhe dos sentidos e renovou-lhe a esperança, mas ela não sabia o que esperar. Apenas quando se sentiu pousada com cuidado na relva húmida e sentiu de novo a carícia da terra nos anéis do seu corpo ela percebeu que estava salva, e que as suas preces tinham sido ouvidas. De súbito, uma voz:

- Estás bem? Consegues regressar ao interior da terra?

Ainda não refeita da sensação da terra molhada no seu corpo, respondeu:

- Quem és tu? Porque é que me salvaste a vida?

O cão castanho sacudiu o corpo peludo e aproximou dela o focinho, dizendo:

- Sou alguém que ouviu as tuas preces, nada mais.

A pequena minhoca ergueu no ar o focinho cor-de-rosa e disse-lhe:

- As minhas preces? Tu ouviste as minhas preces?

O pequeno cão sorriu e olhou para trás, onde uma senhora de olhos brilhantes lhe segurava a trela, maravilhada com o que estava a acontecer. E respondeu:

- As minhas preces também foram atendidas, um dia. E nesse dia eu compreendi que quando nos cruzamos com alguém que precisa de ajuda, nos transformamos nos braços da Terra para lá chegar. 


1 comentário:

  1. Com tanta informação, e de porta aberta, é preciso muita luta para se afirmar. O êxito depende mais do esforço que do acaso. É preciso capacidade de luta e os jóvens de hoje, têm de trabalhar muito para triunfar.

    ResponderEliminar