O fumo do cachimbo.
Voluptuoso, moroso, com notas de morte em cada uma de suas argênteas linhas.
Não se deixem por ele intimidar, distintos cavalheiros, incomparáveis damas.
Sentem-se à minha modesta mesa, ignorem as manchas rançosas que tingem a sua
toalha plastificada, bebam do meu vinho de travo amargo, aceitem a minha
lúgubre companhia, pois hoje quero-vos falar das águas onde habitam as ninfas.
Contam as más-línguas que
após o senhor, seu paizinho, ter falecido, nunca mais as meninas Tágides foram
as mesmas. Nas primeiras décadas de solidão ainda mantiveram um pouco da
compostura pelo papá ensinada, mas logo a esqueceram. Primeiro vieram os
desvarios provocados pela herança famosa do paizinho, que fizeram delas
sensíveis como as mais mimadas menininhas ricas; começaram a ter chiliques cada
vez que viam um bichinho nas suas águas e não tardaram em derramar nelas os
mais impensáveis insecticidas. Anos depois, tiveram a sua fase rebelde e, aos
venenos, juntaram os óleos e petróleos, e sabe-se lá que outras coisas, dos
carros dos seus namoradinhos ainda mais rebeldes. Depois da fase rebelde, veio
a modernice e, nuns acessos de hipsters, termo finamente utilizado nos dias de
hoje para caracterizar os hipócritas materialistas que se regem por absurdas
tendências, começaram a tomar longos banhos de espuma. Tão longos que já nem um
mísero peixinho no Tejo se pode pescar…
Mas estas Tágides do
século XXI têm mais malvadez do que misticismo, e honrando isto lá teceram o plano
perfeito para se livrarem das culpas. Eu sei, isto é um choque para todos vós,
distintos cavalheiros e incomparáveis damas. No entanto, a verdade tem de ser
dita. Se a água do nosso Tejo está emporcalhada, a culpa é das Tágides filhas
do Camões! Dos seus caprichos! Do seu humor inconstante! Das suas almas
contaminadas pela famosa herança do falecido paizinho! Não só as mui perversas
conspurcaram tudo, como têm agora o desplante de culpar os inocentes, gentis,
honrados e correctos, senhores das fábricas! Essa gente humilde que acata toda
a lei, cujo lema é a preservação da natureza! Esses honrados cavalheiros,
alguns deles que até parecem ser donos de quase meio Portugal, que não possuem
conhecimentos alguns para manipularem as aplicações das leis ambientais do
nosso país, muito menos influência para saírem livres de qualquer penalização.
Nada disso. Gente honrada, meus caros, muito correcta e amiga da natureza! A
culpa é apenas das Tágides! Essa badalhocas mimadas, que embora lhes chamemos
meninas já estão tão velhas que se podem caracterizar como putrefactas, que
andam para aí a tomar os seus banhos de espuma, a espalhar os seus venenos para
matarem os bichinhos, a passearem pelo Tejo nos carros dos seus pares
nocturnos!
O horror! Como se não lhes
bastasse culpar os inocentes senhores fabris deste nosso Portugal, as malvadas
Tágides putrefactas ainda têm a ousadia de empinar o nariz para os lados de
Espanha, insinuar que também eles andaram a tomar banhos de espuma onde ao Tejo
se lhe chama Tajo!
Distintos cavalheiros e
incomparáveis damas, isto é um ultraje. Coitadinho do nosso ministro do
ambiente, sua excelência João Pedro Matos Fernandes! Coitadinho! Teve de
aplicar a terrível medida de precaução que consiste em ‘reduzir para metade o
volume do efluente rejeitado, implicando a redução da laboração durante dez
dias’ a uma fábrica inocente! O ministro, a indústria da pasta de papel, os
espanhóis! Todos eles inocentes! Pessoas de bem, sem dúbios interesses, com as
mãos limpas de obscuras negociatas milionárias, sem qualquer tipo de influência
nas leis, livres de qualquer culpa!
Morte às Tágides! Elas que
nos fazem buscar culpados entre inocentes! Elas que querem obscurecer a imagem
de anjos de justiça enviados para a terra pelo mesmíssimo Jesus Cristo! Elas,
distintos cavalheiros e incomparáveis damas, que no fim são as únicas culpadas
de tudo…!
Ah… Que cansaço… Que
aborrecimento… Que tema carunchoso…. Era o meu desejo ter-vos aqui apresentado,
ilustres figuras, argumentos de peso, ter aqui mostrado as leis, os artigos, as
coimas… Mas para quê? Mais vale culpar as Tágides, mais vale sorrir. O século
XXI é a escola primária do mundo, onde, em vez de a justiça ser aplicada como
era esperado, em vez dos factos serem analisados com correcção, se aponta o
dedo e diz ‘Ele fez pior!’ ou ‘Ele bateu-me primeiro!’, e as figuras da
acusação passam a mão pelas cabeleiras lustrosas e dizem ‘Vá, desculpamos o
menino, que até é de boas famílias e pode beneficiar a minha vida privada!’.
Senhores e senhoras, damas
e cavalheiros, ergamos os nossos cálices bafientos! Brindemos à hipocrisia do
século XXI! Celebremos esta justiça coxa, maneta e zarolha, mais zarolha que o
Camões! E deitemos a culpa às Tágides, e façamos o luto ao nosso Tejo! Façamos
luto, pois as suas águas continuarão a ser torturadas, violadas, e os seus
criminosos continuarão livres e impunes! Façamos luto ao Tejo, a Mulher de
todos os rios! E brindemos com os nossos cálices bafientos, celebremos! porque
de nada nos servem já as lágrimas.
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