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sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

CRÓNICA | Tejo: Oh, minhas putrefactas Tágides! | R.C. VICENTE


O fumo do cachimbo. Voluptuoso, moroso, com notas de morte em cada uma de suas argênteas linhas. Não se deixem por ele intimidar, distintos cavalheiros, incomparáveis damas. Sentem-se à minha modesta mesa, ignorem as manchas rançosas que tingem a sua toalha plastificada, bebam do meu vinho de travo amargo, aceitem a minha lúgubre companhia, pois hoje quero-vos falar das águas onde habitam as ninfas.    

Contam as más-línguas que após o senhor, seu paizinho, ter falecido, nunca mais as meninas Tágides foram as mesmas. Nas primeiras décadas de solidão ainda mantiveram um pouco da compostura pelo papá ensinada, mas logo a esqueceram. Primeiro vieram os desvarios provocados pela herança famosa do paizinho, que fizeram delas sensíveis como as mais mimadas menininhas ricas; começaram a ter chiliques cada vez que viam um bichinho nas suas águas e não tardaram em derramar nelas os mais impensáveis insecticidas. Anos depois, tiveram a sua fase rebelde e, aos venenos, juntaram os óleos e petróleos, e sabe-se lá que outras coisas, dos carros dos seus namoradinhos ainda mais rebeldes. Depois da fase rebelde, veio a modernice e, nuns acessos de hipsters, termo finamente utilizado nos dias de hoje para caracterizar os hipócritas materialistas que se regem por absurdas tendências, começaram a tomar longos banhos de espuma. Tão longos que já nem um mísero peixinho no Tejo se pode pescar…

Mas estas Tágides do século XXI têm mais malvadez do que misticismo, e honrando isto lá teceram o plano perfeito para se livrarem das culpas. Eu sei, isto é um choque para todos vós, distintos cavalheiros e incomparáveis damas. No entanto, a verdade tem de ser dita. Se a água do nosso Tejo está emporcalhada, a culpa é das Tágides filhas do Camões! Dos seus caprichos! Do seu humor inconstante! Das suas almas contaminadas pela famosa herança do falecido paizinho! Não só as mui perversas conspurcaram tudo, como têm agora o desplante de culpar os inocentes, gentis, honrados e correctos, senhores das fábricas! Essa gente humilde que acata toda a lei, cujo lema é a preservação da natureza! Esses honrados cavalheiros, alguns deles que até parecem ser donos de quase meio Portugal, que não possuem conhecimentos alguns para manipularem as aplicações das leis ambientais do nosso país, muito menos influência para saírem livres de qualquer penalização. Nada disso. Gente honrada, meus caros, muito correcta e amiga da natureza! A culpa é apenas das Tágides! Essa badalhocas mimadas, que embora lhes chamemos meninas já estão tão velhas que se podem caracterizar como putrefactas, que andam para aí a tomar os seus banhos de espuma, a espalhar os seus venenos para matarem os bichinhos, a passearem pelo Tejo nos carros dos seus pares nocturnos!       

O horror! Como se não lhes bastasse culpar os inocentes senhores fabris deste nosso Portugal, as malvadas Tágides putrefactas ainda têm a ousadia de empinar o nariz para os lados de Espanha, insinuar que também eles andaram a tomar banhos de espuma onde ao Tejo se lhe chama Tajo!

Distintos cavalheiros e incomparáveis damas, isto é um ultraje. Coitadinho do nosso ministro do ambiente, sua excelência João Pedro Matos Fernandes! Coitadinho! Teve de aplicar a terrível medida de precaução que consiste em ‘reduzir para metade o volume do efluente rejeitado, implicando a redução da laboração durante dez dias’ a uma fábrica inocente! O ministro, a indústria da pasta de papel, os espanhóis! Todos eles inocentes! Pessoas de bem, sem dúbios interesses, com as mãos limpas de obscuras negociatas milionárias, sem qualquer tipo de influência nas leis, livres de qualquer culpa!

Morte às Tágides! Elas que nos fazem buscar culpados entre inocentes! Elas que querem obscurecer a imagem de anjos de justiça enviados para a terra pelo mesmíssimo Jesus Cristo! Elas, distintos cavalheiros e incomparáveis damas, que no fim são as únicas culpadas de tudo…!

Ah… Que cansaço… Que aborrecimento… Que tema carunchoso…. Era o meu desejo ter-vos aqui apresentado, ilustres figuras, argumentos de peso, ter aqui mostrado as leis, os artigos, as coimas… Mas para quê? Mais vale culpar as Tágides, mais vale sorrir. O século XXI é a escola primária do mundo, onde, em vez de a justiça ser aplicada como era esperado, em vez dos factos serem analisados com correcção, se aponta o dedo e diz ‘Ele fez pior!’ ou ‘Ele bateu-me primeiro!’, e as figuras da acusação passam a mão pelas cabeleiras lustrosas e dizem ‘Vá, desculpamos o menino, que até é de boas famílias e pode beneficiar a minha vida privada!’.

Senhores e senhoras, damas e cavalheiros, ergamos os nossos cálices bafientos! Brindemos à hipocrisia do século XXI! Celebremos esta justiça coxa, maneta e zarolha, mais zarolha que o Camões! E deitemos a culpa às Tágides, e façamos o luto ao nosso Tejo! Façamos luto, pois as suas águas continuarão a ser torturadas, violadas, e os seus criminosos continuarão livres e impunes! Façamos luto ao Tejo, a Mulher de todos os rios! E brindemos com os nossos cálices bafientos, celebremos! porque de nada nos servem já as lágrimas.              

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