Falei com o autor António da
Costa Neves sobre o seu livro “O Implacável Cerco de Almada” com a
chancela da editora Saída de Emergência.
Neste livro temos a possibilidade
de ficar a conhecer um pouco mais sobre um dos períodos turbulentos da nossa
História. A Crise de 1383-1385, a morte de D. Fernando, o Mestre de Avis como
Regedor do Reino, a decisiva batalha de Aljubarrota e o cerco de Almada.
António da Costa Neves é licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Durante anos, publicou regularmente poesia em diversos jornais e revistas. O seu primeiro romance “Mataram o Chefe de Posto” sobre a temática da Guerra Colonial ganhou o Prémio Literário Cidade de Almada 2007. “Nem por Sonhos” venceu o Prémio Revelação Manuel Teixeira Gomes 20062007. Em 2008, o romance “Adamastor” foi objecto de ensaio académico e tema de seminário na Universidade de Coimbra e de uma conferência na Universidade Complutense de Madrid. O romance “Mea Culpa!” foi em 2010, selecionado como obra de referência para o Concurso Nacional de Leitura do Ensino Secundário. Em 2016, com a obra “Trinta Sonetos Triviais” venceu o Prémio de Poesia e Ficção de Almada-Poesia.
Já este ano o autor ganhou o 1º
Prémio Joaquim Mestre, promovido pela ASSESPA (Associação de Escritores
Alentejanos), Direcção Regional de Cultura do Alentejo e Câmara Municipal de
Beja, com a obra satírica “Um Certo
Incerto Alentejo”.
Para
um homem que é de “entre o Tejo e o Sado” o cerco de Almada tem certamente um
impacto diferente do que teve o cerco de Lisboa. Terá sido esse o motivo que o
levou a escrever este livro?
Quando em 2011 fui
convidado pela UCCLA e pela Câmara Municipal de Almada para participar no II
Encontro de Escritores de Língua Portuguesa, na cidade de Natal, e após ter
sido colocado no painel de Literatura de Viagens, cuja área não era,
seguramente, a minha, a primeira ideia que me ocorreu foi falar sobre a
“Peregrinação”. Na verdade, Fernão Mendes Pinto, depois de ter regressado a
Portugal, tinha vindo viver para Almada, onde casou e foi cidadão exemplar, com
uma atividade cívica relevante, tendo desempenhado alguns cargos públicos,
nomeadamente, à frente da Santa Casa da Misericórdia de Almada.
Acontece que, tendo
vivido em Moçambique durante dois períodos, antes e depois da independência,
também eu tinha uma grande paixão pelas coisas do Oriente. Tendo, inclusive,
escrito um romance sobre a passagem de Camões pela Ilha de Moçambique,
“Adamastor”, onde, segundo Diogo de Couto, testemunha privilegiada e seu amigo
pessoal, o poeta vivia muito pobre e comendo de amigos. Porém, o tempo que
tinha para levar a cabo esse desiderato era muito curto. Além de que não estava
interessado em repetir o que muitos, antes de mim, já teriam dito. Assim, optei
por fazer uma pesquisa sobre a cidade de Almada e colocar-me no lugar de um
guia turístico. A minha intenção passou, então, por tentar vender Almada aos
brasileiros. E assim nasceu “Almada: Um Itinerário Literário, Pessoal e
Transmissível”, uma conferência que realizei numa das sessões do Encontro e que
repeti na Universidade do Rio Grande do Norte.
Foi
durante essa pesquisa que me deparei, junto ao Tejo, num local conhecido por
Fonte da Pipa, com uma pedras gastas pelo tempo, onde decifrei uma inscrição em
que li os dois últimos versos da estância 35 do Canto VIII de “Os Lusíadas”: «Digno feito de ser, no mundo, eterno, /
Grande no tempo antigo e no moderno!»
Estes
versos lapidares levaram-me a descobrir e estudar o episódio a que se referiam,
o que me levou à homenagem que a vereação de 1880 tinha querido prestar aos
almadenses de 1384. De facto, segundo Fernão Lopes, nenhuma outra vila do
Reino, como Almada, tinha sofrida tanto por amor ao Mestre.
Com base na “Crónica de
D. João I”, mas também em inúmeros documentos que pesquisei no Arquivo
Histórico de Almada, comecei a dar corpo a essa outra história. Acontece que em
determinada altura tive acesso a duas escrituras assinadas, cerca de vinte anos
após a Crise de 1383/85, por um escrivão almadenses chamado João Galo. Numa
conversa com o historiador Alexandre Flores, insigne medievalista e na altura
diretor do Arquivo Histórico de Almada, este disse-me que o conde dos Arcos,
outro almadense notável, lhe assegurara que a família Galo tinha chegado até
aos nossos dias.
Afonso Galo era o
regedor (ou recebedor) de Almada, à data dos acontecimentos. Há uma rua na
cidade a homenageá-lo e segundo Fernão Lopes terá sido preso pelos castelhanos
no início do cerco.
Imaginei, pois, que o
escrivão João Galo poderia muito bem ser filho do regedor Afonso Galo, e que,
na altura, não passaria de um adolescente. Neste instante o livro começou a ser
desenhado na minha cabeça. Por isso, o jovem João Galo é o narrador da minha
história, um narrador privilegiado porque, sendo filho do regedor, ele é, também,
parte integrante na narrativa. O facto de Fernão Lopes ter tido duas quintas
aforadas à albergaria de S. Lázaro de Cacilhas, uma na Sobreda e outra em Vale
Figueira, permitiu-me deduzir outros factos e extrapolar a fonte histórica que
o cronista utilizou para narrar o que sobre Almada e os almadenses verteu na
sua crónica.
Tudo isto deu-me a
possibilidade de escrever sobre Almada, a cidade onde vivo há quarenta anos e
que, até agora, nunca tinha sido cenário de nenhum dos meus livros. E isso, na
verdade, também foi e é muito congratulante.
Este
livro histórico levou-o a assinar com o seu nome e não com o seu
pseudónimo E.S.
Tagino, por algum motivo em concreto? Como continuará a assinar as suas futuras
obras daqui em diante?
Quando escrevi o meu
primeiro livro e o apresentei, em 2007, ao Prémio Literário Cidade de Almada,
tive de o fazer mediante um pseudónimo que construi a pensar nos dois rios que,
desde sempre, têm basilado a minha vida: o Tejo e o Sado.
Com esta ideia de que
“eu sou de entre o Tejo e o Sado” elaborei o pseudónimo E. S. Tagino. O livro
“Mataram o Chefe de Posto” ganhou, nesse ano, o primeiro prémio a que tinha
concorrido e foi assim, aos 62 anos, que consegui publicar o meu primeiro
livro. Acontece que o meu editor gostou do pseudónimo e perguntou-me se não
queria continuar a utilizá-lo. Aceitei e desde então publiquei com esse
pseudónimo os meus primeiros oito livros. Quando, em 2017, dez anos depois,
publiquei o “Implacável Cerco de Almada”, também foi o meu editor que me
sugeriu que o assinasse com o meu verdadeiro nome. Era uma mudança, até porque
ia fazer parte de uma nova coleção intitulada A História de Portugal em Romances. Acontece que, há dias, acabei
de ganhar o 1º. Prémio Literário Joaquim Mestre, promovido pela Associação de
Escritores Alentejanos, em parceria com a Direção Regional de Cultura do
Alentejo e a Câmara Municipal de Beja, no qual utilizei, ainda, o mesmo
pseudónimo. Assim o meu próximo livro “Um Certo Incerto Alentejo” irá ser
assinado por E. S. Tagino.
Assim, é provável que, no
romance histórico, opte pelo nome próprio enquanto, na ficção em geral, continue
a fazê-lo através do pseudónimo.
“O
implacável cerco de Almada” é-nos relatado pelos olhos do povo, o que aconteceu
realmente e o que é ficcionado nesta obra?
Todos os factos
históricos narrados no livro são verdadeiros e foram retirados, nomeadamente,
da “Crónica de D. João I” e da “Crónica do Condestável”. O romance histórico
tem, porém, a particularidade de, sem subverter a historiografia, o autor poder
colocar em confronto personagens reais com personagens fictícias. O autor do
romance histórico não pode, de modo nenhum, é abusar da sua imaginação, sob
pena do romance passar a ser uma fantasia, quiçá um delírio.
Já falei em João Galo;
como ele, todos os nomes dos seus amigos foram retirados dos livros da vereação
da Câmara existentes no Arquivo Histórico de Almada. Naturalmente que a Ordem
dos Guardiões do Castelo é pura invenção, como são invenção as soldadeiras Rosa
e Maria Ramalhuda, o rufia das patilhas e outras personagens menores. Contudo a
questão da prostituição e da malandragem que as explorava era real e consta,
por mais de uma vez, nas relações das posturas dos séculos XIV e XV.
Reais são, também,
todos os atos que envolvem os castelhanos e a ação do Mestre de Avis e de D.
Nuno Álvares Pereira. Também Afonso Galo e Diogo Lopes Pacheco são personagens reais,
assim como tudo o que lhes aconteceu. A questão da jurisdição da mina da Adiça
foi durante décadas uma preocupação dos almadenses, bem patente nas atas
camarárias. O tesouro da mulher do infante D. João encontrado em S. Domingos
também é real. Como é real a questão das crianças almadenses que o rei
castelhano fez reféns. Verdadeira é também a contenda existente entre o
Condestável e o capitão castelhano Pedro Sarmiento, que com Castanheda foram os
capitães que cercaram Almada.
Reais são, igualmente,
o almadense que, na última semana do cerco, atravessou o Tejo seis vezes para
levar e trazer mensagens para e do Mestre e, igualmente, o almadense traidor
que delatava, aos castelhanos, os barcos de víveres que vinham de Santarém.
Nestes dois casos, limitei-me apenas a dar-lhes identidade em função das
necessidades da narrativa.
Tudo o que diz respeito
à religião: as obrigações, as devoções e as peregrinações, tudo isso fazia
parte do quotidiano do homem medieval.
Diria, para finalizar,
que, globalmente, o romance retrata a verdade histórica, aqui e ali pincelado
pela imaginação do autor, mas dentro do verosímil pelo que, até por isso mesmo,
podia muito bem ter acontecido.
Tendo
em conta a sua formação em História como funciona o seu sistema de pesquisa?
A minha pesquisa
histórica está, à partida, facilitada pelo facto de ser licenciado em História.
Sem desprezar a historiografia e o que os grandes mestres teorizaram sobre as
questões fundamentais da nossa história, gosto, principalmente, de ver os
documentos originais. Quando alguém cita alguém gosto de ler o citado. Depois,
se falamos sobre uma data, é importante saber como se vivia nessa época: como
se comia, como se vestia, como se divertia, como se amava. Diria que as
questões da sociedade, mesmo as mais comezinhas, são fundamentais para dar
credibilidade à trama. É impossível escrever um romance histórico sem se estar
impregnado do perfume da época. Depois, a linguagem e os conceitos. Se não
sabemos escrever como o Fernão Lopes, devemos, no mínimo, utilizar uma
linguagem mais coloquial, utilizando, inclusive, um mínimo de termos que, tendo
caído em desuso, sejam perfeitamente compreendidos pelos leitores atuais. Isso
aprende-se lendo os clássicos, neste caso Fernão Lopes, D. Duarte, Francisco
Rodrigues Lobo, Fernão Mendes Pinto ou Gil Vicente.
O meu próximo trabalho,
que será publicado, certamente, ainda este ano, tem por título “Um Certo
Incerto Alentejo”, e acaba de ganhar, como já disse, o 1º Prémio Literário
Joaquim Mestre. Trata-se duma sátira desbragada sobre uma certa realidade
social caraterística do mundo rural e, em particular, do Alentejo. Narrada como
uma boa anedota alentejana, tem, por isso, a pretensão de se constituir como o
reflexo mais vasto da sociedade portuguesa atual.
Construída a partir de
uma incerta Reserva Florestal, pulmão, coração e estômago de Azarelhas, a
aldeia que lhe dá o nome, nela perpassa toda a vida política, social, cultural,
económica e religiosa dum microcosmo onde, durante anos, muito pouco parece ter
acontecido.
Em Azarelhas, os
poderosos, personificados no senhor barão e no esfacelado administrador da
Reserva, morreram ou estão em decadência acelerada. O que não está em
decadência, prospera e recomenda-se é a cunha, o saco azul, a gestão danosa, a
corrupção, o peculato e o branqueamento de capitais.
Mas “Um Certo Incerto
Alentejo” é, também, a história de um mistério amável que liga uma morte
inexplicável e uma investigação errática, perfeitamente adequada à cadência
natural dos alentejanos, em geral, e dos “azarelhos”, em particular. Uma
história onde ninguém está inocente. Nela, todos trafulham, todos roubam, todos
mentem, e todos, como bons alentejanos, se fecham em copas porque, no Alentejo,
nunca se viu ninguém estar interessado em condenar o seu semelhante. Como diz o
benquisto padre Miguel, quando explica o episódio da mulher adúltera à sua
assembleia de encortiçadas azarelha, «quem estiver inocente que atire a
primeira pedra».
Mas a pacatez desta
incerta aldeia alentejana vive, sem o saber, suspensa das forças ocultas
geradas pela praga do nemátodo do pinheiro bravo e pela inspeção que a
Direção-Geral de Florestas mandou executar.
Contada no presente do
indicativo por um narrador que parece conhecer a trama apenas por alto, a
história acompanha, do início ao fim, o percurso pouco empolgante do novo
administrador da Reserva, um jovem engenheiro florestal acabado de sair da
Universidade, por sinal, também alentejano. Administrador, que herda a menina
Judite Corriola, uma capitosa balzaquiana, a mais notável das secretárias e a
mais infeliz das criaturas no seu afã insano de romper definitivamente o véu
duma virgindade que, malgrado todos os seus esforços, teima em chegar incólume
até aos trinta e oito anos de idade.
Por isso, e por muito
mais que só a leitura o revelará, “Um Certo Incerto Alentejo” é uma história definitivamente
amoral, mas feita essencialmente daquela amoralidade alentejana que foge ao
estigma e ao sentimento de culpa. Como ninguém é inocente nesta história, a
maldade é relativa e a redenção tanto se faz na igreja como nos balcões das
tabernas onde o sangue de Cristo ronda sempre os 14 graus. Como o narrador
conclui, a dada altura, «se todos fôssemos à missa ao mesmo sítio, não haveria
catedrais que chegassem».
MBarreto Condado
Fotos amavelmente disponibilizadas pelo escritor António da Costa Neves
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