Corro o risco de me repetir, mas afinal, o propósito desta coluna semanal consiste precisamente em partilhar com o mundo aquilo que me faz pensar, que me incomoda, e que tantas vezes, mais do que incomodar me causa uma profunda revolta, uma indignação que me perturba de tal forma que tenho até alguma dificuldade em expressar por palavras o que me vai na alma.
Pedi emprestado a Victor Hugo o início do título deste artigo e é com profundo desgosto que, no ano em que completo dezoito anos de inscrição como Advogada, olho à minha volta e vejo-me forçada a concluir que somos, efectivamente uma classe pejada de "Miseráveis", note-se, e para que fiquem afastados os mal entendidos, não o digo com intuito de ofender ou diminuir quem quer que seja, até porque estaria a ofender-me a mim mesma!
Passarei a explanar, de seguida, algumas das razões deste meu entendimento ( porque somos afinal, nós Advogados "miseráveis"?) e nem sequer tenho a pretensão de ser exaustiva na expressão dessas razões. Estas reflexões que hoje aqui partilho vêm sendo partilhadas e debatidas com um grupo próximo de amigos e colegas de trabalho, e fazendo justiça, quando reflectia entre amigos e colegas sobre o que poderia escrever e em que moldes o poderia fazer, a alusão literária a Vitor Hugo foi sugerida precisamente por um dos membros daquele que considero o meu núcleo duro de amigos e colegas que comungam destas mesmas preocupações (dado o adiantado da hora e não cito o nome da pessoa, que assim o fará publicamente em comentário a este texto, se assim o entender).
E deixando para trás as questões prévias, sinto-me grata por saber que existem, pelo menos, algumas pessoas que comungam desta minha preocupação, e que têm consciência de que somos uma profissão que corre sérios riscos de extinção na sua vertente mais tradicional ou clássica, se preferirem o segundo epíteto, salvo o devido respeito por formas diversas de trabalho, eu tenho de confessar que sempre fui idealista, e que a prática forense que me fez apaixonar e viciar por esta profissão foi a barra, a prática em pequena equipa, a adrenalina de ir aprendendo com a experiência, de fazer renovações pontuais na biblioteca jurídica e descobrir nos célebres "calhamaços" a doutrina certa para fundamentar os casos que vão surgindo, sem esquecer a jurisprudência!
Pessoalmente, ainda hoje continua a ser a adrenalina que me faz sentir um enorme prazer (e assumo, um, por vezes, inconfessado orgulho) quando entro numa sala de audiências para defender um arguido, ou para representar um assistente num processo crime, aquela indescritível sensação de conseguir improvisar (muitas vezes quando a produção da prova nos faz sentir que a linha condutora que tínhamos passado a noite anterior a afinar foi por água abaixo, sendo o direito penal uma das minhas grandes paixões!
A adrenalina flui e pode revelar-se produtiva e prazerosa quando nos sentamos em frente do computador com os nossos parceiros de escrita ideais, numa mesa repleta de livros, dossiers, apontamentos, notas soltas (algumas rascunhadas à pressa, em letra quase ininteligível, no primeiro pedaço de papel que estava à mão quando toca o telefone e algum dos parceiros teve uma ideia a desbravar e estudar mais a fundo na próxima reunião). Este tipo de trabalho é sempre pautado por uma ou outra piada que se debita para desanuviar a tensão, e constata-se que quem, como eu, está familiarizado com esta forma mais clássica (ou antiquada, dirão alguns) de trabalhar, imbuído do espírito de missão de conseguir fazer a justiça acontecer (ou ao menos tentar que ela aconteça e, nesse propósito, dar o nosso melhor) apresenta um raciocínio muito similar, ou complementar (eu sou a viciada na escrita cujos ímpetos de escrever peças processuais gigantes têm de ser contidos sabiamente pelos amigos e colegas que conseguem ser mais objectivos e práticos).
E agora, perguntaram os leitores, então mas se até agora o que foi descrito nos três parágrafos anteriores parece até bastante positivo, como se chega à conclusão de que somos "miseráveis"? A razão primordial já foi enunciada acima, é que tudo isto que acabei de descrever está em sérios riscos de extinção (nem quero pensar a que prazo). A advocacia nacional, nesta que considero ser a sua essência, está à beira de se desmoronar totalmente como um frágil castelo de cartas!
E porquê, entre várias outras razões, porque nos está a ser exigido, em tantos casos, pagar para trabalhar, ao invés de sermos pagos pelo nosso trabalho (reitero o meu veemente protesto e indignação quanto à inconstitucionalidade flagrante decorrente de pagar contribuições para um regime de previdência cuja base de incidência para o cálculo assenta em rendimentos presumidos e não reais), sentir e saber que muitos advogados vivem em situação de gravosa insuficiência económica e sem conseguir "pagar para trabalhar" nem, muito menos, "ganhar pelo trabalho que desenvolvem" e esta impossibilidade pode advir de motivos como: redução da carteira de clientes fruto da recente conjuntura económica negativa, o valor verdadeiramente proibitivo das taxas de justiça praticadas em Portugal que, a meu ver, violam o Direito de Acesso à justiça consagrado na Constituição (num pais onde o salário mínimo é de 580,00€ a taxa mínima para uma acção de valor superior à alçada da primeira instância é de 612,00€ em muitos processos); a perda de actos próprios de advogados que foram confiados a outras entidades públicas ou privadas; o simples e duro facto de os advogados serem seres humanos que podem adoecer e ficar incapacitados de exercer a sua profissão (podendo tal incapacidade ser temporária ou definitiva) e, nesses casos, não terem direito a baixa nem, tão pouco, à suspensão de pagamento de contribuições para a Caixa de Previdência ou das Quotas para a Ordem Profissional (as normas habilitantes em vigor não permitem excepcionar nem acautelar a necessária protecção perante situações excepcionais).
Assusta-me, indigna-me e revolta-me profundamente que existam colegas com penas disciplinares aplicadas por terem faltado a diligências por comprovadas razões de saúde, que mesmo perante os tribunais o justo impedimento para a prática de um acto processual pode não ser entendido de modo a abarcar diversas situações de impedimentos por motivos de saúde.
E deixo para o fim o caso mais grave, mais cruel, mais inacreditável, quando ousando ser humanos os advogados têm a infelicidade de ser acometidos de doenças oncológicas, de doenças crónicas, de doenças incapacitantes, a solução das instituições que deveriam zelar pelos seus associados é o expresso convite a sair, a suspender a inscrição. Esta postura institucional é para mim inconcebível, não consigo assimilar, não consigo calar-me, não consigo ficar indiferente, nem consigo perceber onde se encaixa uma situação destas num Estado de Direito Democrático como dizem ser o nosso!
São vidas que estão aqui em causa, é de seres humanos que se trata e não de números! São carreiras que podem ser ceifadas a qualquer momento, e sem alternativas profissionais viáveis, muitas vezes 10, 20 ou 30 anos de um projecto profissional que podem ser-nos tirados à força...como se gere uma perda de tal dimensão?
Numa triste e cruel ironia, aqui se cruzam, pelo menos dois tipos de "miseráveis": os que caíram em desgraça porque se vêem doentes e pobres e todos os outros que olham de maneira indiferente, conformada e absolutamente passiva para este estado de coisas!
Lutamos todos os dias pelos direitos de outras pessoas, apaixona-mo-nos por essa luta, e por nós mesmos? Quem vai lutar? Até quando vamos tolerar ser os carrascos de nós mesmos por acção ou omissão? É "miseráveis" que queremos ser até ao fim? É desta contraditória massa que somos feitos? O que faremos com os despojos de nós mesmos? Quo Vadis? Precisamos de heróis obscuros, porque com os pseudo-heróis ilustres não me parece que possamos chegar a bom Porto!
"A vida, a infelicidade, o isolamento, o abandono, a pobreza, são campos de batalha que têm os seus heróis; heróis obscuros por vezes maiores do que os heróis ilustres."
In, "Os Miseráveis", Victor Hugo