domingo, 4 de março de 2018

CRÓNICA | Bendita Chuva ! | CRISTINA DAS NEVES ALEIXO

Esta semana, depois de uma atribulada ida às compras, mercê das centenas de pessoas que se encontravam nos espaços comerciais e da ira dos elementos da natureza, decidi fazer uma pausa nos afazeres domésticos e entrei num dos cafés perto da minha casa. Sentei-me a saborear uma tarte de frutos vermelhos. O doce das amoras e dos morangos invadia-me a boca, ao mesmo tempo que se misturava com o acre dos mirtilos, conferindo à iguaria a categoria de um dos maiores prazeres experimentados. 

Ia na terceira garfada de pedaço do céu quando duas mulheres jovens, na casa dos trinta anos, claramente empurradas pela impiedade do vento, entraram de rompante no estabelecimento. A primeira, de cabelos no ar e ar enfadado, apressou-se a abrir caminho entre as mesas, enquanto sacudia o sobretudo castanho em tudo o que era direcção, até se deter a um dos cantos e sentar-se pesadamente numa das cadeiras, suspirando fundo e deixando escapar o cansaço que lhe ia na alma.

- Maldita chuva!

- Estás parva?! Bendita chuva! Não tens visto as notícias?! O país está em seca severa e, em alguns sítios, extrema. Tem que chover.

- Olha, ainda não dei por nada – encolheu os ombros.

Dei por mim a arquear uma sobrancelha - o que nunca é bom sinal -, ao mesmo tempo que, não sendo católica praticante, mentalmente me espantava com a súplica que ali se impôs: perdoa-lhe, meu Deus, pois não conseguiste dar inteligência e discernimento a todos os seres humanos; bem, isto significa que também Tu não és perfeito. Sorri com a constatação, muito mais ao meu género, e abanei maquinalmente a cabeça tentando pôr de lado os pensamentos que dariam, certamente, uma longa e valorosa dissertação. Voltei a concentrar-me na conversa à minha frente, afinal, estava curiosa com o desfecho da mesma.

- Nós somos uns sortudos, pois em Lisboa ainda não demos por isso como em outros locais do país. Por acaso já pensaste há quantos meses não chovia de jeito? Estamos no Inverno, não no Verão.

- Sim, eu sei, mas não gosto de chuva.

- Eu também não morro de amores, mas penso naquelas pessoas que têm a vida arruinada por não conseguirem que as colheitas vinguem, ou que não conseguem alimento para os animais que estão a morrer à fome, ou, ainda, para os que querem, simplesmente, tomar um banho ou beber um copo de água. Isso está a passar-se no nosso país! Como é que podes ser tão insensível?!

A outra mulher não respondeu, visivelmente mortificada pelas palavras certeiras da amiga. Olhou em volta, pela primeira vez desde que ali chegara, enquanto pagavam a despesa, para saírem logo de seguida.

Eu fiquei a pensar na cena que observara e em quantas pessoas pensariam e agiriam como ela. Quantas pessoas ainda dariam a água como um bem adquirido, como uma fonte inesgotável que existe apenas com o propósito de servir individualmente as nossas necessidades, sem olharmos aos nossos pares e aos outros seres vivos; na falta de empatia, egocentrismo e egoísmo que domina os nossos tempos. Felizmente nem todos são aquela mulher; alguns – muitos - são a outra. Será que somos suficientes para inverter a tendência suicida da humanidade? Gosto de pensar que sim. Espero não estar, também eu, à semelhança daquela cega mulher mas noutro sentido, obviamente, a iludir-me, a viver fora da realidade. 


1 comentário:

  1. O egoismo e a falta de esclarecimento em determinadas matérias não se justificam essencialmente quando vem de parte de gente jovem que tem o dever e a obrigação de estar esclarecido em muitas matérias porque esclarecimento e informação não faltam, assim as pessoas queiram. A constatação de um facto: "a ignorância nua e crua" que a Ana Cristina relata com rigor e a delicadeza que consegue em face a esta situação caricata...

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