Pegou
bruscamente no gato amarelo sem olhar para ele a direito sequer, com uma mão
apenas. Na outra, brilhava o ecrã vidrado do telemóvel. Atirou-se para cima da
cama, com o gato ainda encaixado no braço, e com as costas da mão que segurava
o telemóvel posicionou desajeitadamente as almofadas e alisou a colcha da cama.
O gato, incomodado, tentou libertar-se do braço que o prendia, mas ela não
permitiu que fugisse. Colocou a câmara do telemóvel em modo selfie, e
enquadrou-se a sí e ao animal na imagem reflectida no pequeno ecrã. Sorriu e
fez olhinhos de mel, mas depressa franziu o sobrolho, uma das almofadas estava
desenquadrada. “Não pode ser”, pensou, “a foto tem que ficar perfeita”. Ajeitou
a almofada, mas quando olhou de novo para o pequeno ecrã percebeu que quando se
tinha esticado para ajeitar a almofada, tinha enrolado a colcha debaixo de si
mesma. Levantou-se com enfado da cama, a bufar e de gato nos braços. Esticou a
colcha e deitou-se de novo. Desta feita, o gato já não estava preocupado em
mostrar-lhe com gentileza que estava farto de ser tratado como um peluche, e
começou a debater-se vigorosamente. Na tentativa de não o deixar fugir, ela
deixou cair o telemóvel, que bateu no chão com estrondo. Deu um grito e levou
as mãos à cabeça, o que deu ao gato a oportunidade perfeita para desaparecer
pela porta do quarto. Saltou da cama num segundo e apanhou o telemóvel do chão,
com o coração nas mãos e a respiração acelerada. Se estivesse partido tão cedo
não teria direito a outro, e ficaria isolada do mundo. Se não estivesse
presente nas redes sociais, o que pensariam os seus amigos? O mundo
esquecer-se-ia dela!
Apanhou
o aparelho do chão, e confirmou que não estava partido. Suspirou profundamente
e apertou-o contra o peito, os olhos fechados de quem não tinha ganho para o
susto. Aliviada, depressa se recompôs: caminhou na direcção da cama, ajeitou de
novo a colcha e as almofadas, e olhou em volta à procura do gato. Afinal de
contas as pessoas adoram gatos, e todas as fotos tiradas com eles tinham muito
mais interesse e geravam muito mais interacção na rede do que fotos simples da
cara. E com ele podia mais facilmente justificar a vontade de publicar fotos de
si própria, sem necessidade de perder a modéstia.
Saiu
do quarto à procura dele, mas por muitas voltas que desse não o encontrou:
chamou, procurou nos locais mais improváveis e até abriu uma lata de atum,
coisa que o fazia sempre aparecer se estivesse por perto. Nada. Só havia uma
coisa a fazer:
-
MÃE! Viste o gato?
A
mãe estava a trabalhar no próximo artigo para o jornal, sentada em frente ao
computador. Ergueu ligeiramente os olhos para ela, ajeitando os óculos na ponta
do nariz, e respondeu antes de voltar a fitar o monitor:
-
Parece-me que saiu para o jardim.
Ela
encolheu os ombros, exasperada, e rolou os olhos. Como não tinha pensado nisso?
Aquela peste peluda adorava esgueirar-se para fora de casa sempre que lhe era
possivel. Dirigiu-se para a porta, pegou nos óculos escuros e saiu, de
telemóvel ainda na mão.
Lá
fora, mesmo de óculos escuros, não pôde evitar sentir os olhos feridos pela luz
do sol durante uns segundos, e só depois reparou no esguio gato amarelo sentado
na relva no centro do jardim, a olhar para ela. Esfregou os olhos debaixo dos
óculos de sol, e avançou para ele:
-
Espero que tenhas perdido a vontade de fugir, isto é importante!
O
gato pareceu sorrir, e fechou os olhos enquanto lambia a pata, para depois
começar a esfregá-la no focinho vigorosamente. Aproximou-se com ligeireza do
pequeno animal e sentou-se ao lado dele, procurando enquadrar no pequeno ecrã
do telemóvel a si própria e ao gato ainda sentado ao seu lado. Depois de várias
tentativas frustradas, porém, resmungou:
-
Bolas! Não consigo tirar uma fotografia de jeito com este sol!
Frustrada,
começou desajeitadamente a tentar levantar-se com o telemóvel na mão, e quando
percebeu que sentada não conseguia girou o corpo para ficar de joelhos. E nesse
momento reparou novamente no gato: já não estava sentado, quieto. Estava a
brincar com um pequeno ramo que possuia ainda algumas folhas que se agitavam no
ar. Sem pensar, sentou-se de pernas cruzadas e pegou no ramo. Pousou o
telemóvel na relva ao seu lado e começou a brincar com ele. Uns segundos
depois, rebolavam ambos pela relva e ela ria como nunca, já sem óculos de sol.
Longe de o pensar, sentiu que há muito que não se divertia tanto. E se tivesse
pensado mais um pouco, teria percebido que não estava ninguém a ver. Ninguém a
filmar. Ninguém a fotografar. Ninguém a deixar “gostos” ou “adoros” no que
estava a fazer. Ninguém saberia. E, contudo, estava feliz. Era feliz. E podia
ser feliz, sem que o mundo precisasse de o saber. Ou de o validar.
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