domingo, 18 de março de 2018

CRÓNICA | O ser e o parecer | CRISTINA DAS NEVES ALEIXO


Nos últimos tempos tenho andado mais atenta que o habitual às reacções contraditórias das pessoas e à crescente necessidade de tudo destacar. Talvez por estar a ficar saturada de tanta incongruência e picuinhice, ou, se calhar, sou eu que estou a ficar “avariada” – já tenho dado por mim a pensar, face às inconsistências verificadas.

Há um bocadinho de tudo. Para todos os gostos, como se costuma dizer.

Já repararam que todos os dias se comemora alguma coisa? Mas que raio de necessidade é esta de assinalar “tudo e um par de botas” só porque… sim?! Ele é o dia dos bonitos, dos feios, do pastor, dos tios, dos sobrinhos… blá, blá, blá… do céu nublado, do periquito. Até há – pasmem-se -, o dia da falsidade. Da falsidade! Que coisa bonita e importante, certo? Não! E não! Lembro-me de experimentar uma sensação de tristeza ao saber da existência deste dia - queixamo-nos que andamos tão ocupados e depois temos tempo para estas… -, parecemos autênticas criancinhas invejosas e birrentas - porque aquele tem eu também quero – e disputamos nas redes sociais as criações mais absurdas.

Na mesma arena há quem defenda acerrimamente a obrigatoriedade da limpeza dos terrenos por parte dos proprietários – “têm que limpar, pois claro, quem haveria de ser?, não podemos ter mais incêndios como os do ano passado!” -, para depois vir contestar, com a mesma veemência, a estipulação de prazos para o fazer e a aplicação de multas, caso o prazo não seja cumprido. Mas como raio querem obrigar um país a cumprir os seus deveres?! Onde é que está a razoabilidade de ser defender posições opostas para um mesmo assunto? Ainda se fosse o facto de os prazos serem curtos, seria compreensível.

Há quem diga adorar o tempo de Inverno e ande a rezar a todos os santinhos por umas valentes chuvadas, nestes tempos conturbados de seca extrema, para depois vir bufar para todos os cantos que já não suporta a chuva, o vento e o frio. Esquecem-se rapidamente das necessidades globais. Estes também são aqueles que, habitualmente, ainda o Verão não começou e já andam a suspirar pelo tempo invernoso. Afinal em que é que ficamos?

Constato que hoje vale mais aparecer virtualmente, e a qualquer pretexto, do que ser íntegro e consistente ao defender com paixão aquilo em que verdadeiramente se acredita. Já não se valoriza as conversas puras, olhos nos olhos, em que a linguagem corporal é o espelho das nossas crenças e emoções e desvenda a verdade sem barreiras; onde o toque, o cheiro, todos os sentidos, são fundamentais para saudáveis interacções e vivências. Escondemo-nos cobardemente atrás de um telefone, de um ecrã de computador e fingimos ser aquilo que não somos, consoante ditar a maioria, pois o importante é estar na crista da onda. Privilegiamos o parecer em detrimento do ser e amachucamos o livre-arbítrio, a liberdade individual de existir, para os descartarmos num qualquer caixote esquecido. Consequentemente, vamos perdendo as qualidades que nos fizeram alcançar o patamar de evolução actual e as futuras gerações, crescendo neste panorama de frivolidade, constroem um mundo onde a autenticidade, algo por que nos batemos durante tanto tempo, deixará praticamente de existir.

Pensemos nisto. Onde é que escolhemos deixarmos de ser? Onde é que escolhemos, simplesmente, deixar de viver?


1 comentário:

  1. "Pensemos nisto. Onde é que escolhemos deixarmos de ser? Onde é que escolhemos, simplesmente, deixar de viver?"...

    sintaxe da Vida...

    entre as palavras e nós
    as pontes
    são ténues e frágeis...
    à espera do seu tempo
    do seu precipício...
    do mais fundo de nós
    o segredo...
    entre as palavras e nós
    há perfis ardentes
    espaços cheios
    de gente de costas...
    palavras de vida
    palavras de morte
    vida sem palavras
    morte das palavras....
    entre as palavras e nós
    há os outros
    frágeis
    que deixaram de esperar...
    entre as palavras e nós
    - acesas como barcos...
    palavras nocturnas
    palavras gemidos
    há palavras
    que nos sobem
    ilegíveis à boca...
    palavras impossíveis de escrever...
    entre as palavras e nós
    todo o sangue do mundo
    todo o amplexo do ar...
    braços dos amantes
    espasmos
    amor e solidão desfeita...
    entre as palavras e nós
    - os emparedados...
    palavras enfileiradas
    palavras construídas
    na desconstrução
    da noite
    que nos habita...
    da cegueira
    que nos ilumina...
    por isso
    as conserto
    desconsertando-me
    com todos os sentidos...
    assumo, assim,
    o esplêndido e radioso caos
    de onde emerge
    a sintaxe da Vida...

    ResponderEliminar