Nos últimos tempos tenho andado mais atenta que o
habitual às reacções contraditórias das pessoas e à crescente necessidade de
tudo destacar. Talvez por estar a ficar saturada de tanta incongruência e
picuinhice, ou, se calhar, sou eu que estou a ficar “avariada” – já tenho dado
por mim a pensar, face às inconsistências verificadas.
Há um bocadinho de tudo. Para todos os gostos,
como se costuma dizer.
Já repararam que todos os dias se comemora alguma
coisa? Mas que raio de necessidade é esta de assinalar “tudo e um par de botas”
só porque… sim?! Ele é o dia dos bonitos, dos feios, do pastor, dos tios, dos
sobrinhos… blá, blá, blá… do céu nublado, do periquito. Até há – pasmem-se -, o
dia da falsidade. Da falsidade! Que coisa bonita e importante, certo? Não! E
não! Lembro-me de experimentar uma sensação de tristeza ao saber da existência
deste dia - queixamo-nos que andamos tão ocupados e depois temos tempo para
estas… -, parecemos autênticas criancinhas invejosas e birrentas - porque aquele
tem eu também quero – e disputamos nas redes sociais as criações mais absurdas.
Na mesma arena há quem defenda acerrimamente a
obrigatoriedade da limpeza dos terrenos por parte dos proprietários – “têm que
limpar, pois claro, quem haveria de ser?, não podemos ter mais incêndios como
os do ano passado!” -, para depois vir contestar, com a mesma veemência, a
estipulação de prazos para o fazer e a aplicação de multas, caso o prazo não
seja cumprido. Mas como raio querem obrigar um país a cumprir os seus deveres?!
Onde é que está a razoabilidade de ser defender posições opostas para um mesmo
assunto? Ainda se fosse o facto de os prazos serem curtos, seria compreensível.
Há quem diga adorar o tempo de Inverno e ande a
rezar a todos os santinhos por umas valentes chuvadas, nestes tempos
conturbados de seca extrema, para depois vir bufar para todos os cantos que já
não suporta a chuva, o vento e o frio. Esquecem-se rapidamente das necessidades
globais. Estes também são aqueles que, habitualmente, ainda o Verão não começou
e já andam a suspirar pelo tempo invernoso. Afinal em que é que ficamos?
Constato que hoje vale mais aparecer virtualmente,
e a qualquer pretexto, do que ser íntegro e consistente ao defender com paixão
aquilo em que verdadeiramente se acredita. Já não se valoriza as conversas
puras, olhos nos olhos, em que a linguagem corporal é o espelho das nossas
crenças e emoções e desvenda a verdade sem barreiras; onde o toque, o cheiro,
todos os sentidos, são fundamentais para saudáveis interacções e vivências. Escondemo-nos
cobardemente atrás de um telefone, de um ecrã de computador e fingimos ser
aquilo que não somos, consoante ditar a maioria, pois o importante é estar na
crista da onda. Privilegiamos o parecer em detrimento do ser e amachucamos o
livre-arbítrio, a liberdade individual de existir, para os descartarmos num
qualquer caixote esquecido. Consequentemente, vamos perdendo as qualidades que
nos fizeram alcançar o patamar de evolução actual e as futuras gerações,
crescendo neste panorama de frivolidade, constroem um mundo onde a
autenticidade, algo por que nos batemos durante tanto tempo, deixará
praticamente de existir.
Pensemos nisto. Onde é que escolhemos deixarmos de
ser? Onde é que escolhemos, simplesmente, deixar de viver?
"Pensemos nisto. Onde é que escolhemos deixarmos de ser? Onde é que escolhemos, simplesmente, deixar de viver?"...
ResponderEliminarsintaxe da Vida...
entre as palavras e nós
as pontes
são ténues e frágeis...
à espera do seu tempo
do seu precipício...
do mais fundo de nós
o segredo...
entre as palavras e nós
há perfis ardentes
espaços cheios
de gente de costas...
palavras de vida
palavras de morte
vida sem palavras
morte das palavras....
entre as palavras e nós
há os outros
frágeis
que deixaram de esperar...
entre as palavras e nós
- acesas como barcos...
palavras nocturnas
palavras gemidos
há palavras
que nos sobem
ilegíveis à boca...
palavras impossíveis de escrever...
entre as palavras e nós
todo o sangue do mundo
todo o amplexo do ar...
braços dos amantes
espasmos
amor e solidão desfeita...
entre as palavras e nós
- os emparedados...
palavras enfileiradas
palavras construídas
na desconstrução
da noite
que nos habita...
da cegueira
que nos ilumina...
por isso
as conserto
desconsertando-me
com todos os sentidos...
assumo, assim,
o esplêndido e radioso caos
de onde emerge
a sintaxe da Vida...