Anabela Natário, 57 anos, alfacinha. Jornalista e
escritora. Começou em 1981 no Correio da Manhã, passou pela Agência Lusa,
Público, 24Horas, Courrier Internacional e jornal Expresso, entre muitas outras
colaborações. Quando fez um descanso dos jornais, foi adjunta do presidente do
Supremo Tribunal de Justiça e criou uma empresa inovadora de venda de prosa à
medida, a “Énetextos, Caracteres Efervescentes”, e depois… voltou ao
jornalismo. Quanto ao lado de escritora, publicou a primeira ficção,
A Cueca Bibelô, em 2007, e a segunda em 2014, O Assassino do Aqueduto. No ínterim, foi coautora de um livro sobre património mundial publicado em chinês, fez um prefácio a contar a história de Francisco Grandella e os Makavenkos e publicou mais seis livros, estes formando uma coleção de 177 biografias de mulheres do século X ao XX, intitulada “Portuguesas com História”. Agora, está de volta ao crime…
“Falar de crime também é uma maneira de historiar o país, além
de passar testemunhos de outras épocas, de outras índoles”.
Na medida em que poucas pessoas conheciam os casos descritos
no livro onde são retratados acontecimentos reais de assassinas, falsificadoras
e ladras portuguesas dos últimos três séculos gostávamos de saber o motivo pelo
qual achou importante escrever um livro sobre estas mulheres?
Eu gosto de História, de jornalismo, da problemática feminina
e da criminologia. Na minha “missão” de repórter enviada ao passado, já descrevi
a vida de outras 177 mulheres, em seis livros intitulados Portuguesas com
História. Não eram criminosas, mas nem todas foram heroínas do seu tempo.
Muito diferentes são, porém, estas 23 mulheres, todavia, também com elas quis
dar a conhecer personalidades e vidas noutros tempos… é precisamente como digo
na introdução de Mulheres Fora da Lei, contar histórias de crime é também
fazer a História de um país. Em especial, porque tenho a preocupação de fazer
enquadramentos, de dar testemunhos das épocas descritas, de revelar jornais. E
retrato criminosas, como também agentes da justiça, políticas, locais…. É bom
saber de tudo, a censura é péssima a todos os níveis, muito mais na aquisição
do conhecimento. Por outro lado, o facto de as mulheres cometerem menos crimes
do que os homens não significa que não os pratiquem. Além disso, é necessário
recordar o passado para acautelar o futuro.
Na sua perspetiva o que levou estas mulheres a tornarem-se
criminosas? A época em que viviam? O contexto sociocultural? Ou simplesmente
uma incapacidade de sentir empatia e amor?
Não tenho certezas. No caso das assassinas de maridos, embora
não haja desculpa para o ato, parece-me que elas não viam outra saída para um
casamento doloroso (quando sujeitas a maus-tratos, o que era a “normalidade”)
ou para a falta de amor senão o livrarem-se dos maridos tirando-lhes a vida. Não
havia divórcio, a separação era um passo dificílimo para uma mulher e amores
fora do casamento só eram permitidos aos homens. Quanto às gatunas, a maioria
vivia na miséria, num meio miserável… exploradas por homens (uma boa parte),
portanto, quando a pobreza social é desta ordem as saídas para a sobrevivência
são escassas. Outras houve, claro, que gostavam do que faziam, ou seja, de se
dedicarem ao crime. É assim a história da existência humana, desde os primórdios.
Há casos e casos, mulheres e mulheres, homens e homens…
Quando fez a sua investigação encontrou certamente informação
escondida nos arquivos que consultou que não tenha colocado no livro, e que de
alguma forma possam ficar para uma continuação de Mulheres Fora da Lei?
Sim, aliás, os casos retratados em Mulheres Fora da Lei
já saíram do meu arquivo, que é resultado de uma pesquisa mais alargada sobre
crime (e outros factos históricos) que faço há anos. Daí que tenha muitas mais
histórias na manga com personagens femininas e masculinas. Em breve, espero que
ainda este ano, irão surgir outras histórias deste já bem recheado meu arquivo.
Confesso-lhe que de todos os casos retratados no livro aqueles
que mais me impressionaram foram o da Luísa de Jesus (assassina em série) e a
de Maria do Carmo (a filicida), talvez por se tratarem de casos envolvendo bebés.
Na sua opinião qual foi a reação das pessoas a estes dois casos em particular.
Os crimes de Luísa de Jesus, rapariga de 23 anos, impressionam
sempre. Não temos registo em Portugal de um crime deste calibre… ela foi
condenada por ter assassinado 28 crianças, bebés que ia buscar à roda dos
expostos de Coimbra, mas terá matado mais de 30… para ficar com os 600 réis, o berço e os 66 centímetros
de pano de lã felpudo que a Misericórdia dava às amas, por cada bebé que
levavam para criar ou para dar a outras famílias que dele cuidassem. Ninguém
fica indiferente a um caso como este, mesmo sabendo que tudo aconteceu num
tempo longínquo; são crimes cometidos a sangue frio, sem remorso. A Maria do
Carmo é diferente, no perfil, nas motivações… a única semelhança é a idade… julgo
que foi um ato de desespero matar o filho de um mês. Estamos a falar dos últimos
anos do século XIX, as mulheres não tinham direitos e as criadas de servir
muito menos. Quando, numa casa, havia um roubo, por exemplo, a criada era a
primeira a ser presa, mesmo que nada indicasse que fora ela. Se uma mulher
engravidava sem ser casada tratava-se de um atentado social, se fosse de “boas
famílias” ainda arranjava maneira de se livrar do estigma, mas sendo criada… Maria
do Carmo viera há pouso meses da província, onde um soldado lhe prometera
casamento para a namorar, contudo, quando ela engravidou nunca mais ninguém o
viu. Quando a barriga se começou a fazer notar, deixou a casa do militar onde
trabalhava, desesperada… Já no hospital, uma outra companheira de enfermaria
disse-lhe que abandonasse a criança numa escada, prática comum, ou que a
entregasse na misericórdia de Lisboa. Ali, embora percebessem que ela não tinha
condições para o criar, disseram-lhe que não podiam aceitar o bebé, por uma
questão burocrática: este tinha sido concebido em Pombal, portanto, fora do
concelho de Lisboa. Transtornada, sem saber o que fazer, foi da misericórdia ao
jardim do Campo Grande, a pé, com a criança nos braços; lá chegada, escolheu um
banco, junto ao lago, estrangulou o filho, e esteve horas a fio, sentada, com o
bebé morto nos braços, até anoitecer, até o pousar com cuidado no chão, num
local onde era visível... Falamos de uma altura em que o aborto é proibido,
extremamente perigoso e, por isso, pouco praticado. Quase todos os dias, surgem
nos jornais notícias sobre o aparecimento de um feto, uma suspeita de infanticídio,
uma criança abandonada. Maria do Carmo disse que lhe passou uma nuvem pela cabeça…
Qualquer destes casos, o de Luísa de Jesus e o do Maria do Carmo, impressionam
qualquer pessoa, julgo eu. Para mais, é tudo real, em nenhuma das histórias que
conto há ficção, mesmo quando digo que está a chover ou a fazer sol.
Alguns leitores poderão pensar que os castigos eram muito
severos “cortadas e separadas as cabeças dos corpos já mortos e levadas e
postas no lugar do delito” ou até que alguns eram muito leves “oito anos de
prisão celular, seguida de doze anos de degredo”, tendo esta assassina ainda
vivido até aos 86 anos. Se lhe pedisse a sua opinião sobre os castigos em geral
qual seria a sua resposta.
Eu sou contra a pena de morte, portanto, até me custa pensar
que além desse castigo, os juízes ainda sentenciassem, por exemplo, que as cabeças
dos criminosos e criminosas fossem penduradas no local do crime… uma imagem que
nunca pensei poder associar à História de Portugal. Também não me parece que as
penas de prisão fossem leves… basta pensarmos como eram horríveis as condições
das cadeias e a dureza da vida em áfrica, no entanto, eram assim os castigos no
passado, em épocas em que me parece que até a justiça era pouco recomendável.
Veja-se o caso de Isabel Clesse que foi acusada de tentativa de homicídio, o
que a livraria da forca, mas como tinha um amante, como “vivia publica e
escandalosamente amancebada”, coisa imperdoável a uma mulher, foi condenada à morte
e enforcada. Ao apreciarmos sentenças dos séculos passados nota-se o procedimento discricionário… atualmente, também há
razões para queixas, mas estamos muito melhores. Apesar de tudo, o país está muito
melhor, o mundo está muito melhor.
Pensa mesmo que “só o facto de já estarem todas enterradas no
passado nos deixa alguma tranquilidade”?
Bem, é uma forma de dizer que as criminosas retratadas já não
andam por aí, já não podem fazer mal a ninguém. Por isso mesmo, digo alguma
tranquilidade. Só alguma, porque o crime, independentemente da altura em que é praticado,
seja no passado ou no presente, é algo que incomoda. Há por aí muitas
substitutas… Uma sociedade sem crime não existe, infelizmente foi assim ontem é
assim hoje, todavia, temos sempre a ilusão de que o conseguiremos erradicar
combatendo-o, e ainda bem que temos essa esperança.
Se escrevesse uma continuação de Mulheres Fora da Lei já neste
século pensa que poderia encontrar casos semelhantes, com os mesmos contornos
ou as mulheres deste século serão mais “hábeis” nas suas fazes mais negras?
As mulheres continuam a cometer menos crimes do que os homens,
no entanto muitas continuam a fazê-lo. Mulheres que assassinam, que roubam, que
vigarizam, chantageiam… continuam a existir, algumas com outros requintes,
praticando o crime de forma mais refinada. E até em maior número… é o preço que
se paga pelo ganho de maior liberdade de movimentos, pela emancipação de um
sexo continuamente subjugado, mesmo quando se fala em crime.
Sinopse
Nem sempre fomos um país de brandos costumes. Venha
conhecer as mulheres criminosas que aterrorizaram Portugal.
Cuidado com elas! São 23 mulheres, desde assassinas a
vigaristas e gatunas. Uma desfez-se do marido, servindo lhe um prato de arroz
temperado com arsénio ao jantar. Outra, seguindo um plano mais elaborado,
temperou um clister com a mesma intenção. Uma terceira ia buscar crianças para
adotar e desfazia-se delas, asfixiando-as com uma tira de pano. Menos
violentas, mas não menos criminosas, são as larápias de mão leve, algumas
verdadeiras figuras públicas, cujas aventuras nos dão a conhecer o Portugal de
outros tempos. Mulheres Fora da Lei convida-nos a viajar pela vida das maiores
criminosas dos últimos três séculos. E só o facto de já estarem todas
enterradas no passado nos deixa alguma tranquilidade.
Fotos: Saída de Emergência
MBarreto Condado
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