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segunda-feira, 30 de abril de 2018

CRÓNICA | A voz da Vida | VANESSA LOURENÇO


Perdi-o naquela noite. O meu amigo, o meu companheiro, o meu gato. O único que sempre soube preencher os meus silêncios e a minha incapacidade de lidar com o mundo lá fora, sem me julgar. O único que compreendeu que eu me afastei dos ruídos do mundo, apenas para encontrar os meus silêncios, porque ele sabia que eram os únicos que me podiam salvar.

Perdi-o, e os meus silêncios transbordaram para o mundo lá fora. Uma corrente que não consegui conter, e que me arrastou. Submersa na torrente de emoções descontroladas, fechei os olhos durante muito tempo, e não vi o mundo passar. Ignorei todos os sinais de esperança, todos os gritos de alerta, todas as portas abertas e palavras fáceis, ocas.

Perdi-o. E porque o perdi, recusei encontrar-me. No olho da minha mente, eu via apenas a ausência escura e definitiva da morte. Mal sabia eu... e que ridículo me parece agora, recordar.

Um dia, senti uma brisa leve no rosto, e olhei em volta. Era Outono, e o chão estava coberto por um extenso tapete de folhas secas. As folhas estavam mortas, e, no entanto, as árvores a que pertenciam, estavam vivas. Pensei então na mudança de pêlo dos animais: eles perdem o pêlo morto, e, no entanto, permanecem vivos. A vida insistia em se renovar a todo o instante à minha volta, e isso fez-me pensar.

Porque cremos que a vida se renova apenas até onde conseguimos ver? Porque cremos que tudo o que existe, cabe dentro dos nossos olhos? Porque cremos que algo que faz parte de nós, pode alguma vez ser perdido?

Foi então que ouvi a voz:

- Entendes agora? Nós não somos as folhas secas que caem da árvore, somos a árvore; não somos o pêlo morto que se liberta dos animais, somos o próprio animal. Não somos a lagarta, somos a essência que se liberta da gravidade, e decide voar. Evoluindo sempre, mudando sempre. Mas sobretudo, libertando-nos a cada passo do caminho do que já não nos ajuda a crescer.

Recordando por um momento o imenso gato amarelo que tanto amava, arrisquei:

- Quer dizer que não te perdi?

Uma brisa fresca percorreu o meu cabelo comprido, e senti como se algo se encostasse à minha perna. Ouvi então a voz dizer:

- Quer dizer que neste mundo, nos habituamos a usar corpos que nos definem. Apegamo-nos a eles para criar laços. Mas se olhares para lá do que um corpo te pode oferecer, tudo o que resta é para sempre.



domingo, 29 de abril de 2018

CRÓNICA | Perfeita Natureza | CRISTINA DAS NEVES ALEIXO

Se há coisa que gosto de comer é fruta. Não sou o chamado “bom garfo”, no sentido em que como para viver e não o contrário, mas a fruta é uma das minhas perdições. Numa das minhas incursões a uma superfície comercial para me abastecer da dita, deparei-me com as bancadas repletas de frutos brilhantes e convidativos. “Vamos lá ver se é desta”, pensei, e acerquei-me das ameixas. Assim que lhes toquei… estavam verdes, mais uma vez. Suspirei. Passei ao melão, às uvas, às maçãs, aos kiwis… tudo completamente impróprio para consumo. Abanei a cabeça em desaprovação, enquanto o meu pensamento tomava as rédeas e cavalgava a toda a brida pelas razões mesquinhas que, actualmente, levam os produtores a criar tudo à pressão. Desabafei verbalmente qualquer coisa a propósito, enquanto passeava o olhar desolado pelas cores à minha frente. 

- É para amadurecer, minha senhora – ouvi ao meu lado.

Mas o que… dei conta do zumbido nos ouvidos, virei meio corpo e tive uma visão turva de uma mulher jovem, vestida com a farda do estabelecimento, que dispunha mais maçãs encortiçadas no expositor.

- Eu compro fruta para comer, não para decorar a fruteira e depois deitar fora – respondi-lhe enfadada.

Encarou-me com um olhar perdido, como se não percebesse minimamente o que lhe tinha acabado de dizer. Encolhi os ombros, enquanto constatava que era uma perda de tempo tentar explicar-lhe que a fruta naquelas condições, colhida muito antes de tempo, não amadurece; que uma coisa é inspirar o aroma natural à medida que nos aproximamos dos frutos, sentir a sua maciez na ponta dos dedos, deleitarmo-nos com a suavidade da polpa e a abundância de sumo ao serem trincados e outra, bem diferente, é fruta rija, sem cheiro, encortiçada e que não sabe a absolutamente nada. Ultimamente só encontro o segundo cenário. Que saudades da fruta criada naturalmente.

Virei-me e vim-me embora, sem nada nas mãos, enquanto pensava que o dinheiro move realmente tudo. Por ele até nos matamos lentamente ao produzirmos verdadeira porcaria para consumirmos, carregada de hormonas de crescimento, antibióticos, pesticidas, conservantes e outras substâncias nocivas, apenas para criar e vender mais rápido e em maior quantidade. Nós acordamos os cancros que nos assolam e matam. Tentamos, por todos os meios, controlar e manipular o tempo e a vida, esquecendo-nos que o melhor plano já foi traçado há muito tempo. Chama-se natureza.


sábado, 28 de abril de 2018

REFLEXÕES OCASIONAIS | "Liberdade, onde estás? Quem te demora?"...ou...vivemos num Estado de Direito Democrático?

   No passado dia 25 de Abril grande parte do país, de Norte a Sul, saiu à rua em romaria de cantares de Abril apregoando as conquistas da revolução, relembrando heróis e, num já gasto e pouco convincente cliché, celebrando a liberdade!

   Curiosamente...ou não, eu que nasci no ano da Revolução, tenho este ano assumidamente clamado por uma verdadeira Revolução na área da justiça em geral, e da advocacia em particular e devo confessar que não senti vontade de ir para a rua celebrar um conceito que, a meu ver, é hoje mais aparente e mítico do que real! 

   Senão Vejamos, somos um país livre? Sim! Muito bem, então se assim é, porque me dizem que eu e tantos outros colegas Advogados não podemos continuar a exercer a nossa profissão, a não ser que tenhamos um determinado e tendencialmente elevado estatuto sócio-económico?!

   Somos democratas? Sim ! Muito bem! Então porque assistimos quase todas as semanas à descoberta de obscuras redes de interesses, lobbies, trocas de favores, corrupção ao mais alto nível e porque vemos políticos que - à esquerda, ao centro e à direita - adulteram ou "embelezam" intencionalmente currículos académicos para, talvez, alimentar falsamente a sua auto-estima e, acima de tudo, em busca de uma mais sólida posição na política nacional!

   Somos livres? Sim! Muito bem! Então porque somos nós contribuintes a pagar as pesadas facturas da falência de grandes bancos privados, e porque assistimos à descapitalização do único grande banco público (Caixa Geral de Depósitos) em prol de socorrer essas mesmas perdas do foro privado?!

   Somos um Estado de Direito Democrático? Sim! Muito bem! Mas esse mesmo estado que não reconhece direitos iguais a todos os seus cidadãos, e que tem uma classe despojada dos mais basilares direitos sociais e assistenciais: os advogados não têm direito a baixa por doença, não têm direito a condigno apoio à maternidade e paternidade, nem têm direito a optar pelo regime contributivo que seja mais justo, equitativo e consentâneo com os seus rendimentos efectivamente auferidos! (Estou a repetir-me, sim estou, mas não me cansarei de o fazer até que alguém nos oiça!).

   Somos livres?  Sim! Muito Bem! Então porque somos considerados proscritos, temerários ou loucos se ousamos remar contra a corrente, exercitar o nosso espírito crítico e olhar para certas realidades com o nosso próprio e peculiar olhar e não pela lente de terceiros (ainda que estes possam ser uma maioria...envergonhada ou conformada!)  Seja-nos permitido pensar livremente pela nossa própria cabeça, livres das amarras do politicamente correcto, do conformismo, do "by the book"!

   Abril trouxe consigo a democracia? E de que espécie de democracia falamos quando temos uma classe política que não vence nem convence, como demonstram as elevadas taxas de abstenção!

 Somos livres? Sim! E quanto nos custará essa liberdade na forma como deixamos que seja exercitada sem controlo pelas gerações futuras? Que esperar de jovens cuja principal ambição de vida é "ser como o Cristiano Ronaldo" (como se ser excepcional fosse regra), ou possuir o mais recente modelo de tablet, telemóvel ou consola de jogos electrónicos? Que esperar de jovens que, na sua maioria, não têm hábitos de leitura, e que se recusam a escrever um texto, alegando em sua fraca defesa "falta de imaginação"?!

   O que nos é permitido esperar? Que país? Que políticos? Que sociedade? Que valores? Que Justiça? Que confiança nas instituições? Que liberdade? Que "Abril"? Que Futuro?

   "Abril"é uma página da história, nem sequer é linear, nem sequer é totalmente inocente (embora por vezes seja idealizado), não foi o último capítulo, e nem mesmo creio que seja o último, e temo que o livro da história nacional possa não ter o desejado "Final Feliz"!

   Resta-nos, ao menos, a liberdade do inconformismo, por isso, citando Manuel Maria Barbosa du Bocage ouso perguntar:

"Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia?"

LITERATURA | Memórias Secretas de Mário Cláudio | EDITORA DOM QUIXOTE

Nas livrarias a 30 de Abril


A um autor que é dado à literatura biográfica, vêm parar as memórias secretas de três figuras bem conhecidas. O mais curioso é que não se trata de pessoas mas de personagens de banda desenhada. Terão Corto, Bianca e Valente uma existência própria e independente dos seus criadores?

É o que ficaremos a saber depois de concluída a leitura deste romance.

terça-feira, 24 de abril de 2018

LITERATURA | A Mãe de Pearl S. Buck | EDITORA DOM QUIXOTE - Tradução de Isabel Risques

Nas livrarias a 24 de Abril


Nesta obra, Pearl S. Buck descreve de um modo quase pictórico a vida simples e rude do povo Chinês, numa época que é pouco conhecida. A narrativa vívida e pormenorizada permite que o leitor capte toda a simplicidade e intensidade dos tempos descritos em A Mãe.

Ao penetrar no espírito da camponesa, Pearl S. Buck dá a conhecer os sentimentos mais profundos da mente e do coração de uma mulher e de uma mãe. Fá-lo de uma maneira comovente, enérgica e mesmo violenta. A personagem, sem qualquer dúvida estoica, assume uma grandeza excecional pela forma como encara e ultrapassa os obstáculos que a vida lhe coloca. Uma vida longa, árdua e solitária.

segunda-feira, 23 de abril de 2018

LITERATURA | A Casa Golden de Salman Rushdie | EDITORA DOM QUIXOTE - Tradução de J. Teixeira de Aguilar

Nas livrarias a 24 de Abril


Quando o poderoso magnata imobiliário Nero Golden imigra para os Estados Unidos em circunstâncias misteriosas, ele e os seus três filhos adultos assumem novas identidades, adotando nomes «romanos» e instalando-se numa grandiosa mansão do centro de Manhattan. Chegados pouco após a tomada de posse de Barack Obama, ele e os filhos, todos excecionais por direito próprio, ocupam rapidamente o seu lugar no topo da sociedade nova-iorquina. A história da família Golden é contada sob a perspetiva de um seu vizinho e confidente, René, um aspirante a cineasta que encontra nos Golden o tema perfeito.

Fazendo apelo à literatura, à cultura pop e ao cinema, Rushdie tece a história do ambiente americano ao longo dos últimos oito anos, tocando todos os pontos: a ascensão do movimento Birther, do Tea Party, do Gamergate e da política de identidade; o efeito de ricochete do politicamente correto; a influência dos filmes de super-heróis e, evidentemente, a eclosão de um vilão ambicioso, desapiedado, narcisista e profundamente conhecedor da comunicação social, que usa maquilhagem e pinta o cabelo.

domingo, 22 de abril de 2018

CRÓNICA | Ser português | CRISTINA DAS NEVES ALEIXO


Viver em Portugal é conviver com a sua gente de sorriso simpático, pronta a ajudar e a aproximar-se sem reservas dos seus interlocutores, sejam eles de que nacionalidade forem – a hospitalidade portuguesa e a facilidade de falar qualquer língua são sobejamente conhecidas - e usufruir de um clima de sonho, sem catástrofes naturais de maior monta, em paisagens desde a neve ao mais fino areal da praia; é desfrutar de uma luz natural, com um brilho raro, muito superior a outros locais do mundo; é degustar uma das melhores cozinhas e néctares e ter a felicidade de caminhar calmamente nas ruas em liberdade e sossego.

Mas ser português tem outro lado, incompreensível para quem preza a justiça e a verdade. Portugal tem um dos salários mínimos mais baixos da Europa, uma carga horária laboral elevada, uma taxa de desemprego insustentável, um serviço de segurança social podre, importa muito mais do que exporta e assiste, impávido, a todo o tipo de corrupção ao mais alto nível. Temos políticos que “desviam” e promovem tudo o que lhes convier, banqueiros coniventes com operações ilícitas na alta finança, juízes que, conscientemente, se demitem das suas reais funções e assumem posturas parciais e tremendamente questionáveis, médicos que rasgam o juramento de Hipócrates e se associam à máquina moedeira das farmacêuticas, entidades que roubam crianças aos seus progenitores e outras que deveriam cuidar delas e dos nossos velhos e os mantêm em vivências completamente inaceitáveis aos padrões humanos, polícias que são condenados por fazerem o seu trabalho, grandes empresários que mais parece quererem destacar o que é feito lá fora do que cá dentro e… nada é feito para travar isto.

Tudo se vai desenrolando, impunemente, mês após mês, ano após ano, década após década, à frente dos nossos olhos, num país que é um dos mais ricos do mundo em recursos naturais. Temos tudo o que é necessário para viver – não é sobreviver – sem praticamente depender de mais ninguém. Temos gás natural, petróleo, minerais diversos, sol em abundância, grandes extensões de solo arável e cultivável, óptimos aquíferos, um oceano rico em peixe, um clima excelente para qualquer tipo de agricultura e grandes mentes. Isto em linhas muito gerais.

Porque razão preferimos usar-nos do que é dos outros em vez do que é nosso? Porque não aproveitamos os recursos e as boas capacidades que temos – porque as temos, sim! - para criar emprego sustentável, para fazer crescer o país, para repor a justiça social, ao invés de apostarmos naquilo que os outros produzem? A relação entre os recursos naturais e o poder mundial é bem conhecida e nós temo-los de sobra. Porque continuamos a encolher os ombros à miséria de sistema em que vivemos? A resposta, creio, está nos nossos “brandos costumes”, como é hábito ouvir-se dizer. Aceitamos tudo o que nos é feito, mesmo que nos faça muito mal. Somos um povo permissivo, de conversa de café. Ali despojamos a corrupção e a injustiça de tudo e mais alguma coisa, somos super-heróis que se batem estoicamente pelo justo e pela igualdade de peito feito, mas depois, de volta à realidade diária, baixamos a cabeça e os braços e pensamos que melhores dias virão. Têm que vir, pois claro.

A pensar morreu um burro – ditado popular.

LITERATURA | A Trança de Inês de Rosa Lobato de Faria | EDITORA ASA

Nas livrarias a 24 de Abril



Três tempos, três mundos, três destinos, um único amor. Universal e sem tempo nem medida, relembrando-nos que o amor e o ódio andam lado a lado e acontecem em todas as épocas.

Pedro é, no presente, um empresário de sucesso que se perde de amores por Inês. Mas este é um amor condenado à tragédia e à loucura. A sua história confunde-se com a de Pedro Rey, no século xxii, apaixonado também por uma Inês de entrançados cabelos loiros num futuro que os afasta por pertencerem a estratos diferentes da sociedade. E ainda com a lenda de D. Pedro que, no século xiv, tenta contra tudo e contra todos fazer valer o seu amor por Inês de Castro.

Baseado no mito de Pedro e Inês (mais na lenda do que na História), este é um romance sobre a intemporalidade da paixão, onde se abordam também alguns mistérios da existência.

Um romance que deu origem ao filme Pedro e Inês, realizado por António Ferreira e protagonizado por dois actores bem conhecidos do público português.

sábado, 21 de abril de 2018

REFLEXÕES OCASIONAIS | Os media e o segredo de justiça - ligações perigosas? | ISABEL DE ALMEIDA

Portugal vem nos últimos anos sendo abalado por constantes mega-processos judiciais que alcançam um tão elevado nível de mediatismo que, por vezes, paramos para nos questionar se estamos a assistir à realidade a desfilar perante os nossos olhos ou a um qualquer filme de Hollywood!

Em abono da verdade, e com a vantagem do duplo crivo do jornalismo e da advocacia, já assisti, em ambos os lados da barricada, a muitas realidades dignas de suplantar a melhor ficção, mas cabe reflectir acerca dos limites impostos à imprensa na cobertura dos casos ditos mediáticos, na forma como esses limites, ao serem ultrapassados, podem prejudicar ou beneficiar arguidos.

 Tendo presente que o nosso sistema penal tem por base o princípio da presunção de inocência, de acordo com o qual, qualquer arguido é inocente até que, em sede de audiência de discussão e julgamento possa ser provada a sua culpabilidade, e, em caso de dúvidas fundadas acerca da prática de determinado ilícito por um qualquer agente, deverá ter-se em linha de conta um outro importante princípio designado in dubio pro reo - de acordo com o qual, se dúvidas fortes surgirem da produção de prova, deverá o julgador decidir a favor do réu/arguido, absolvendo-o, na medida em que se considera menos gravoso deixar um culpado impune, do que permitir que  um inocente fique  enleado nas malhas da justiça a cumprir pena por um crime que não cometeu.

Da minha experiência como advogada, começo já por referir que, pese embora tenhamos um limite  máximo de pena relativamente brando, se comparado com outros países (a pena máxima em Portugal é de 25 anos, não sendo viável fazer subir este período de tempo em cúmulo jurídico, ainda que a mesma pessoa, no limite, cometa vários homicídios de forma intencional e sem qualquer justificação que não seja a pura vontade de tirar a vida a outros seres humanos), a meu ver, podemos retirar algumas conclusões baseadas na experiência pessoal e no nosso sentido crítico ao olhar o mundo:

 1ª) qualquer cidadão Português, com culpa ou sem ela, pode ser arguido em processo crime (e mesmo que o final redunde em absolvição, haverá sempre um estigma social negativo associado à condição de arguido, em especial, se estivermos perante crimes mais condenados pela sociedade civil, de que é exemplo a pedofilia ou  a violência doméstica); 

2ª) visto não existir algo a que se chama perfeição, é perfeitamente possível que um inocente se veja condenado em Portugal;

 3ª) Last but not least, é também perfeitamente possível que um culpado seja absolvido (e que atire a primeira pedra qualquer advogado que, tendo a si mesmo confiada a defesa de um arguido, não sinta que cumpriu a sua missão de defensor cabalmente, ao conseguir uma absolvição ou uma pena reduzida ou suspensa);

4ª) Em muitos aspectos, a forma sobrepõe-se ao conteúdo, e os nossos tribunais estão ainda muito formatados para uma certa ritualização que, tantas e tantas vezes, faz perder o foco naquilo que seria o essencial, ou seja, apurar a verdade dos factos, alcançar uma decisão equilibrada e justa!

5ª) Mais recentemente, denota-se uma tendência para o que designo como "justiça feita à pressa", sem rigor, sem cuidado, sem o clássico gosto pelo uso da palavra como arma que deve ser rainha na prática forense, perdeu-se muito do fulgor da escrita jurídica, muito embora esta ainda contemple uma linguagem muito própria e de difícil alcance para quem com a mesma não esteja familiarizado.

Logo, quando estamos perante um qualquer caso mediático, é relativamente fácil verificarmos que o segredo de justiça fica perdido algures na teia de interesses e nas ligações perigosas que envolvem o meio judicial e os media (quem e como se viola diariamente o segredo de justiça?), é tanto assim que já começa a ser brincadeira habitual entre advogados comentar se a instância superior com competência para reapreciar um processo judicial será um tribunal ou certos órgãos de comunicação social cujo nome vou abster-me de citar, mas que são conhecidos e lidos por uma vasta maioria, até por muitas pessoas que são capazes de jurar a pés juntos que não lêem tal tipo de imprensa (ai a hipocrisia politicamente correcta fica bem, mas não convence meus senhores!)

Compreendo que possa ser prejudicial à defesa dos arguidos envolvidos em processos crime complexos a mediatização excessiva e até abusiva de tais casos, mas, por outro lado, não posso deixar de reconhecer a importância que tem para que saibamos em que país vivemos, tomar conhecimento de assuntos que, em última análise são "do interesse do público", mas também "do interesse público", ou seja, ao cidadão comum é legítimo interessar-se por notícias deste teor, mas também é do interesse público que a imprensa dê a conhecer o que de errado se passa neste cantinho à beira mar plantado, que já teve mais moral, bons costumes e valores do que hoje em dia, convenhamos...

Considerando as duas perspectivas, entendo perfeitamente que em termos editoriais seja necessário, muitas vezes em clima de forte pressão, arriscar uma decisão de publicar ou transmitir algo que está algures na linha que separa o "interesse do público" e o "interesse público", e que poderá valer a pena arcar com as consequências (até legais em última análise) de avançar com determinada notícia (recordo em especial uma situação limite vivida há cerca de pouco mais de um ano, quando estando no exercício de funções de directora de um jornal, toda a redacção se manteve reunida em forte tensão, até de madrugada, para decidir se deveria ou não ser publicada uma notícia polémica cujas fontes teriam de ficar protegidas pelo anonimato, acontecesse o que pudesse acontecer).

Todavia, também percebo que a publicação de notícias, ou a divulgação de gravações em video e audio de actos processuais (como publicamente sucedeu recentemente) possa incomodar os responsáveis pela defesa de determinado arguido, possa incomodar algum público anónimo que sinta assim algo fragilizado o sistema judicial Português.

A grande questão é: onde estão os limites? qual o ponto de equilíbrio? até onde é legitimo arriscar? que consequências podem advir desse risco de ultrapassar limites? Infelizmente, não há uma resposta dotada de exactidão matemática para nenhuma destas questões, não existem receitas milagrosas que permitam alcançar a perfeição e a justiça para todas as partes envolvidas, resta a cada um de nós ouvir o que nos dizem as vozes da intuição e da consciência e decidir conforme acharmos mais conveniente, em cada caso, sem certeza de termos tomado a opção mais correcta! É, reconhecidamente, terreno pantanoso este do equilíbrio entre a acção dos media e o segredo de justiça, ou mais amplamente, a ligação entre os media e o sistema penal Português.

Também não tenhamos ilusões, muitas decisões editoriais podem ser tomadas de forma oportunista, com o mero fito de aumentar audiências, em especial, em termos televisivos, quase podemos afirmar que "se não passou na televisão é porque não aconteceu, ou não foi assim como contam". Devo ainda referir que é bastante usual encontrarmos erros graves em termos de conceitos ou regimes jurídicos em muitos artigos de imprensa, erros estes que têm o perigoso poder de desinformar, ao invés de informar o público ( como seria desejável), pelo que considero que a imprensa deveria apostar em fazer o chamado "trabalho de casa" quando publica peças que envolvem temáticas jurídicas ( criminais ou outras) e nem sempre há este cuidado, também porque nas redacções, à semelhança do que vai acontecendo nos nossos tribunais, o rigor técnico fica muitas vezes arredado destas lides.

Uma boa pista quanto à conduta a seguir, considerando os diversos ângulos da questão, na minha opinião, seria a humildade de reconhecer de que nem sempre se ganha, nem sempre se perde e de que nem sempre se acerta nem sempre se erra numa dada decisão ou opção tomada!

Como defendia Sócrates (o filósofo Grego...) resta-me concluir que "Só sei que nada sei!", mas sempre haverá quem se julgue dono da verdade e dotado de uma arrogância própria dos Sofistas!

sexta-feira, 20 de abril de 2018

LITERATURA | Autobiografias Alheias de Antonio Tabucchi | EDITORA DOM QUIXOTE - Tradução de Pedro Tamen, Clelia Betteni e Susana Mateus

Nas livrarias a 10 de Abril



Um livro cativante, aparentemente feito de subtis reflexões sobre a própria obra (Requiem, O Fio do Horizonte, Mulher de Porto Pim, Afirma Pereira, Está a Fazer-se Cada Vez Mais Tarde), mas em que se encontra uma forte continuidade com alguns dos principais temas tabucchianos: a frágil distinção entre realidade e ficção, a relação «pirandelliana» com as personagens das suas narrativas, a ausência de barreiras temporais e, por fim, a relação com o universo da fotografia. Um livro empolgante para os leitores mais experientes, um testemunho fundamental para os estudiosos da obra de Tabucchi e, ao mesmo tempo, um livro capaz de conduzir o leitor mais curioso para o âmago do universo literário do mais português dos escritores italianos.



quarta-feira, 18 de abril de 2018

CINEMA | ATÉ NOS VERMOS LÁ EM CIMA

ESTREIA 19 DE ABRIL

Filme premiado do cinema - e da literatura - francesa estreia em Portugal




ATÉ NOS VERMOS LÁ EM CIMA, filme realizado por Albert Dupontel conta a história de Edouard (Nahuel Pérez Biscayart) (120 batimentos por minuto) e de  Albert (Albert Dupontel), dois ex-combatentes da primeira guerra mundial, com muito pouco em comum, a não ser o ódio ao Tenente Pradelle (Laurent Lafitte) (Ela) que tentam sobreviver na Paris dos anos 20, marcada pela Guerra.

Vencedor de 5 Césares nas categorias de Melhor Realização, Melhor Adaptação, Melhor Figurino, Melhor Fotografia e Melhor Direção de Arte, ATÉ NOS VERMOS LÁ EM CIMA é um drama cheio de emoção, beleza e humanidade, que conta uma história de amizade onde o bizarro e o sonho andam de mãos dadas.

Baseado no romance de Pierre Lemaitre, Prémio Goncourt 2013, o filme recorre à fantasia como recurso contra os traumas de infância e da guerra, com uma sensibilidade única e encantadora, tendo recebido uma excelente receção por parte da crítica.


Sinopse
Em novembro de 1918, antes do Armistício, o talentoso artista Edouard Pericout (Nahuel Pérez Biscayart) salva a vida de Albert Maillard (Albert Dupontel). Os dois homens não têm nada em comum para além das suas experiências na guerra e o seu ódio pelo Tenente Pradelle (Laurent Lafitte).
Uma ordem de Pradelle para um derradeiro e insensato ataque acaba por resultar na destruição das vidas de Edouard e Albert. Isto leva a que os três homens tenham de criar novas estratégias para a sua sobrevivência, sempre unidos pela tragédia do campo de batalha.
Enquanto Pradelle ganha a sua fortuna com os que perderam a vida, Albert e Edouard, ambos condenados a viver no rescaldo da 1ª Guerra Mundial, vão planear o seu próprio esquema de proporções monumentais.
Inspirado no romance homónimo de Pierre Lemaitre, vencedor do Prémio Goncourt.

Prémios César 2018
Melhor realização: Albert Dupontel
Melhor Adaptação: ALBERT DUPONTEL, PIERRE LEMAITRE
Melhor Figurino: Mimi Lempicka
Melhor Fotografia: Vincent Mathias
Melhor Direção de Arte: Pierre Queffelean




CRÓNICA | Noturno arco-íris, O trovão na Serra de Sintra | HELDER MENOR





















Estávamos no começo de abril e tínhamos à volta de vinte anos. Eramos quatro e apanhamos o comboio no Rossio para Sintra. Levávamos nas mochilas o essencial para três ou quatro dias de liberdade. Uma tenda grande e velhinha, chouriços para assar, latas com atum e salsinhas, um fogão a gaz, esparguete, sonhos, fantasias, vinho, aguardente e chocolates. 

Saídos da estação, subimos e embrenhámo-nos nos matos. O mais longe possível da civilização, assim quis. Do estradão de terra, viramos à direita por um caminho estreito que subia íngreme. No cume da colina, longe do mundo montamos a tenda. Instalamo-nos para desfrutar da serra, da privacidade que o mato dá e da companhia uns dos outros. As duas meninas organizaram a tenda e a comida e os rapazes, decidimos ir apanhar lenha e cavar uma "casa-de-banho”.

Quando ficou de noite acendemos uma fogueira dentro da cova que nos aquecia e dava para assar chouriços, mas suficientemente discreta para ser invisível a quem estivesse afastado. Estávamos os quatro animados, comemos e bebemos vinho. Foi então que começou a levantar-se vento e a pingar. 

Recolhemos dentro da tenda para jogar às cartas e fumar através do fecho da porta. A chuva e o vento não davam tréguas. Sobretudo o vento cada vez mais forte.  Desistimos dos cigarros.

O que é que fazemos o que é que não fazemos… O vento respondeu rasgando o sobre-teto da tenda. Ai Ai e agora? Agora aguentamos enquanto o pano do teto der....

Não deu muito. Minutos depois também o pano fino de algodão apodrecido se rasgou e estávamos expostos aos elementos, encharcados e encolhidos.

Decidimos desmontar e descer até à vila. Assim como assim, já estávamos molhados e na estação dos comboios, sempre tínhamos um teto. A estação estava a uma hora de caminho... Mas é quase sempre a descer, alguém animou.

Encharcados, carregados e de lanternas acesas iniciamos a descida pelo caminho ainda mais estreito pela escuridão da noite. Estávamos vagamente desorientados. Do lado direto do caminho que não reconhecíamos, uma casa que não tínhamos visto na subida. As janelas iluminadas. À nossa frente e fazendo-nos parar à chuva, um são bernardo enorme, felpudo e amistoso ladrava de contente e dava saltos a nossa volta. No pescoço uma placa que dizia Trovão. Ladrava para nós, corria para o portão da casa e voltava a correr para nós a ladrar. 

Foi então que se acendeu uma luz amarela por cima da porta e através dela surgiu uma senhora. Eram precisamente meia-noite e três minutos.

A senhora, sem idade, tinha os olhos azuis muito claros e o cabelo tão louro que parecia branco. Estava vestida com um daqueles quimonos japoneses que algumas pessoas usam como roupão, por baixo, provavelmente o pijama porque trazia calçadas pantufas e meias grossas de lã.

- Não tenham medo do Trovão que não faz mal!!! Mas o que é que estes jovens, andam aqui a fazer numa noite destas?
Contamos a nossa história. A senhora ouviu educadamente e concluiu.

- Não vos digo para ficarem cá dentro da casa, porque não seria apropriado, afinal somos de épocas diferentes... Mas podem abrigar-se na garagem que esta vazia.
Foram estas as palavras. Agradecemos e aproveitamos. 

A garagem estava de facto vazia. Lá fora a chuva e o vento continuaram. Minutos depois a mesma senhora loura voltou com toalhas secas e com um tabuleiro onde fumegavam quatro canecas de chá.

Batizamos o chá com macieira de uma garrafa sobrevivente do diluvio, despimos a roupa molhada e secámo-nos com as toalhas. Pusemos os sacos camas em cima de duas mantas que e deitámo-nos procurando aquecer. Dormimos tão profundamente como se pode dormir, quando se tem vinte anos, se está cansado, vagamente bêbado, saciado e feliz. 

Acordei com o som da água a pingar no chão ao lado da minha cabeça. Estranhei porque na noite anterior o telhado da garagem não me tinha parecido tão decrepito. Pensei em levantar-me para fazer xixi, mas estava nu debaixo dos sacos camas e levantar-me pareceu-me um sacrifico maior do que aguentar mais um bocadinho. Fechei os olhos.

Então ouvi o grito de uma das nossas parceiras e o estilhaçar das canecas de louça da noite anterior mais o som estridente do tabuleiro de lata a cair no chão. 

Levantámo-nos todos. Abrindo a porta da garagem que caiu no chão. E vimos.

A casa era uma ruína. O jardim completamente coberto por mato. Onde foram as janelas havia apenas o buraco na parede. Nem portas nem vidros. O mato tinha crescido alto e tapava todos os caminhos. O portão da frente, por onde tínhamos entrado estava ferrugento e fechado com uma igualmente ferrugenta corrente grossa. No chão em frente ao que foi a porta da cozinha, uma lápide com um baixo-relevo de um cão: Trovão, nascido em janeiro de 1946 falecido em março 1959.

Não fugimos a correr, mas também não ficamos a falar sobre o sucedido. Arrumamos o que havia para arrumar e saímos. Depressa descemos à vila com sol que tinha aberto e depressa apanhamos o comboio para Lisboa. Não voltamos a falar na casa, nem na senhora nem no Trovão. Nunca mais.


terça-feira, 17 de abril de 2018

LITERATURA | Tempo Suspenso de Elizabeth Jane Howard | EDITORA ASA - Tradução de Elsa T.S. Vieira

Nas livrarias a 17 de Abril



Sussex, 1939

Na casa de campo dos Cazalet as janelas estão tapadas e os alimentos são racionados. Sobre a mansão outrora repleta de sol e de risos paira a negra sombra da guerra. As crianças despreocupadas da família deram lugar a adolescentes apreensivos, cada um com os seus desejos e temores.

Louise, agora com dezasseis anos, acalenta o sonho de se tornar atriz. Clary dedica-se à escrita, e acredita fervorosamente que ainda voltará a ver o pai, desaparecido em combate. E Polly, de catorze anos, carrega um fardo que precisa de partilhar. Três jovens entre a infância e a idade adulta, desesperadas por dar um sentido às suas vidas mas dolorosamente conscientes dos perigos que se avizinham.

No segundo volume da saga Cazalet, Elizabeth Jane Howard volta a pintar o retrato de uma época através dos olhos de uma família. Com uma autenticidade conseguida apenas por quem viveu nesses tempos, a autora mostra-nos a realidade de uma sociedade em profunda mutação.

LITERATURA | Um Amante no Porto de Rita Ferro | EDITORA DOM QUIXOTE

Nas livrarias a 17 de Abril



Uma história vibrante, escrita à desfilada, que segue a vida de Álvaro, um rapazinho do Porto, nascido de uma família burguesa da classe média, desde a escola primária até ao ensino universitário, passando pelas festas, o encontro com os «meninos da Foz», o hóquei em patins e as bandas musicais do seu tempo, a paixão pelos cavalos e pelas mulheres, os grupos de estudantes e a Mocidade Portuguesa, até ao dia em que, já divorciado, encontra Zara, uma lisboeta livre, impetuosa e indiscreta, vinte anos mais nova, que pressente nele, por trás da aparente candura da sua história, uma verdade obscura que dificilmente aceitará. Uma relação dura, sobressaltada e passional, feita de incerteza, de traição e de devassa, em que o amor se degrada com a desconfiança e onde quem esconde pode não encobrir tanto como quem indaga.

Um Amante no Porto é mais um surpreendente romance de Rita Ferro, que é também o retrato de uma época e uma profunda reflexão sobre o amor, no estilo directo e desafectado que é seu timbre inconfundível, com a competência narrativa a que já nos habituou.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

LITERATURA | O Fogo Será a Tua Casa de Nuno Camarneiro | EDITORA DOM QUIXOTE

Nas livrarias a 17 de Abril



O escritor Nuno Camarneiro decide viajar até uma zona de guerra no Médio-Oriente para melhor entender as razões do conflito e de quem nele participa, juntando-se a um jornalista turco. Mas o que começa por ser uma visita de estudo transforma-se rapidamente num pesadelo, quando ambos são sequestrados por um grupo de fundamentalistas islâmicos e encerrados num barracão que partilham com outras vítimas: uma freira ortodoxa, um engenheiro holandês, um soldado americano e um francês misterioso e suicida.

Ao longo de várias semanas, terão de encontrar estratégias de sobrevivência para não enlouquecerem nem perderem a esperança: contam histórias, revisitam memórias, inventam jogos e vidas inteiras, tornam-se guerrilheiros da ficção.

Numa guerra entre homens, ideias, deuses e civilizações, não há partes neutras, e é difícil distinguir as vítimas dos agressores. A verdade escreve-se em muitas línguas, como as histórias, os romances e os sonhos de cada um.

CRÓNICA | Empatia | VANESSA LOURENÇO

Na qualidade de seres vivos senscientes, muitas vezes nos deparamos com situações em que pessoas que nos são próximas se encontram em sofrimento de algum tipo, e não conseguimos evitar sentir empatia e uma vontade imensa de os ajudar. De certa forma é uma reacção inata dos seres humanos, sentimo-nos de certa forma validados por empatizar com o infortúnio alheio e recompensados internamente quando conseguimos fazer a diferença, e ajudar o outro a ultrapassar um obstáculo que o limita. Um pensamento egoísta? Talvez. Mas a ser verdade, é do meu ponto de vista um egoísmo que faz de nós seres melhores, e do mundo um lugar melhor para crescer. Nunca me sentirei culpada por me sentir bem, quando faço alguém sorrir.

Mas também é perigoso.

A empatia em si é uma emoção perigosa, porque na sua forma mais pura implica que nos coloquemos no lugar do outro. E se formos sensíveis o suficiente, ao invés de ajudar, acabamos contagiados e esgotados por emoções e circunstâncias que em última análise, não nos pertencem.

Não é por acaso que somos seres individuais a conviver em sociedade, isso implica que cada um de nós tem os seus próprios passos e o seu próprio caminho a percorrer. E quando numa tentativa de ajudar, acabamos imersos no obstáculo do outro, não só não conseguimos ajudá-lo como acabamos a prejudicar-nos a nós próprios. De novo o pensamento egoista? Talvez. Mas conseguiremos realmente ajudar alguém, se nós próprios não estivermos bem? Não. Lamento, mas a resposta é não.

E é por isto que a empatia é perigosa, porque nos aproxima vertiginosmente da linha que separa o querer fazer o bem ao outro, e prejudicarmo-nos a nós próprios. Onde está então o Graal, o equilibrio entre a nossa intenção de ajudar o outro e não nos prejudicarmos a nós?
Eis uma parábola para o demonstrar:

O gato malhado tinha sido recentemente agredido, uma pedra lançada por um homem zangado tinha-lhe acertado em cheio no flanco e ainda coxeava, apesar de não ter lesões permanentes. Mas esse incidente tinha-o tornado num animal zangado, sem confiança nos seres humanos. Por isso naquele dia, quando a menina se tentou aproximar dele para o ajudar, recuou e bufou furiosamente, o pequeno corpo fechado em si próprio e o pêlo todo eriçado, num aviso claro para que ela o deixasse em paz. Ela recuou lentamente, mas não se foi embora. Tinha decidido fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para ajudar o animal ferido, e seria preciso muito mais para que desistisse dele. Agachou-se lentamente, tirou a pequena mochila das costas e abriu-a, sob o olhar atento do animal assustado. Retirou do interior uma pequena lata de atum e uma garrafa de água, e colocou no chão duas pequenas taças que encheu com ambos. Depois recuou mais alguns passos, e esperou.

As horas passaram, e nem ela se levantou, nem o gato se aproximou da refeição que ela colocara no chão. Nenhum dos dois se foi embora, nenhum dos dois se mexeu do lugar durante esse tempo. Por fim, a menina respirou fundo. Conseguia ver claramente que ele tinha fome, e sede. E que a atenção certa o levaria a curar a pata mais depressa. Por fim, decidiu ir-se embora e voltar no dia seguinte, esperando que na ausência dela ele se fosse alimentar.

No dia seguinte quando voltou, ele estava no mesmo lugar. Assim como as duas taças que tinha deixado, intocadas. À distância, ele bufou-lhe novamente. Não de forma tão agressiva como no dia anterior, mas ainda assim mostrando claramente que a distância devia ser respeitada. Ela suspirou e trocou a água da pequena taça, antes de recuar de novo e se sentar no chão. Mais algumas horas se passaram, e nada mudou. Por fim, prestes a ir-se embora, a menina disse ao gato, enquanto esticava as pernas dormentes:

- Eu quero ajudar-te. Apesar de saber que não confias em mim, quero ajudar-te. Não pode ser fácil viver na rua quando se tem fome, sede e se está a recuperar de uma lesão que nos limita. Deixa-me ajudar-te.

O gato tigrado permaneceu agachado e semicerrou os olhos, mas não respondeu. E ela calou-se. Mais algumas horas, e chegou a hora de ela regressar a casa. Respirou fundo mais uma vez, coçou a cabeça de frustração e encolheu os ombros, antes de se levantar. Olhou o gato tigrado nos olhos, e disse-lhe:

- Há uma coisa que tens que entender, eu não estou aqui para te salvar. E muito menos tenho a pretensão de guiar os teus passos. A tua vida é o teu caminho, não é o meu. Não faço ideia dos obstáculos que tiveste que enfrentar, ou das circunstâncias que fizeram de ti aquilo que hoje vejo. Isto é tudo aquilo que tenho para te oferecer, a minha vontade e estas duas taças. O que decidires fazer com elas, só depende de ti.

O gato tigrado ergueu a cabeça e inclinou-a ligeiramente, como que subitamente mais interessado no que ela tinha para dizer. Mas não se mexeu. Ela sorriu e as linhas do rosto serenaram-se-lhe ligeiramente, afinal talvez houvesse esperança. Continuou:

- Eu não conheço o teu medo, porque a vida to entregou a ti e não a mim. Não me pertence. Não posso vivê-lo por ti. Não posso arrancá-lo do teu espírito. Assim como a minha própria vida me entregou desafios e recompensas que nunca conhecerás. Se escolheres não aceitar a minha ajuda, encontrarei outro que a aceite. Se a aceitares, farei tudo ao meu alcance para que te sintas melhor, e com isso mais preparado para tomares as decisões que tens que tomar.

O gato tigrado piscou os olhos e fez menção de se levantar, mas hesitou. Olhou para as duas taças pousadas no chão, e novamente para ela. E levantou-se. Cautelosamente, avançou na direcção das taças, o corpo colado ao chão e a causa comprida agitando-se. Não tirou os olhos dela até alcançar as taças e quando lá chegou, começou lentamente a beber água.

Ela sorriu, e começou a erguer-se lentamente do chão. Ele agitou-se, mas não fugiu. Sacudindo as calças, ela colocou de volta a mochila aos ombros e olhou-o mais uma vez, ele estava agora a comer avidamente o atum. Disse-lhe:

- Até amanhã.

Ele ergueu a cabeça da taça, lambendo o focinho de satisfação, e os seus olhos pareceram dizer:

- Obrigado.