Perdi-o
naquela noite. O meu amigo, o meu companheiro, o meu gato. O único que sempre
soube preencher os meus silêncios e a minha incapacidade de lidar com o mundo
lá fora, sem me julgar. O único que compreendeu que eu me afastei dos ruídos do
mundo, apenas para encontrar os meus silêncios, porque ele sabia que eram os
únicos que me podiam salvar.
Perdi-o,
e os meus silêncios transbordaram para o mundo lá fora. Uma corrente que não
consegui conter, e que me arrastou. Submersa na torrente de emoções
descontroladas, fechei os olhos durante muito tempo, e não vi o mundo passar. Ignorei
todos os sinais de esperança, todos os gritos de alerta, todas as portas
abertas e palavras fáceis, ocas.
Perdi-o.
E porque o perdi, recusei encontrar-me. No olho da minha mente, eu via apenas a
ausência escura e definitiva da morte. Mal sabia eu... e que ridículo me parece
agora, recordar.
Um
dia, senti uma brisa leve no rosto, e olhei em volta. Era Outono, e o chão
estava coberto por um extenso tapete de folhas secas. As folhas estavam mortas,
e, no entanto, as árvores a que pertenciam, estavam vivas. Pensei então na
mudança de pêlo dos animais: eles perdem o pêlo morto, e, no entanto,
permanecem vivos. A vida insistia em se renovar a todo o instante à minha
volta, e isso fez-me pensar.
Porque
cremos que a vida se renova apenas até onde conseguimos ver? Porque cremos que
tudo o que existe, cabe dentro dos nossos olhos? Porque cremos que algo que faz
parte de nós, pode alguma vez ser perdido?
Foi
então que ouvi a voz:
-
Entendes agora? Nós não somos as folhas secas que caem da árvore, somos a
árvore; não somos o pêlo morto que se liberta dos animais, somos o próprio
animal. Não somos a lagarta, somos a essência que se liberta da gravidade, e
decide voar. Evoluindo sempre, mudando sempre. Mas sobretudo, libertando-nos a
cada passo do caminho do que já não nos ajuda a crescer.
Recordando
por um momento o imenso gato amarelo que tanto amava, arrisquei:
-
Quer dizer que não te perdi?
Uma
brisa fresca percorreu o meu cabelo comprido, e senti como se algo se
encostasse à minha perna. Ouvi então a voz dizer:
-
Quer dizer que neste mundo, nos habituamos a usar corpos que nos definem.
Apegamo-nos a eles para criar laços. Mas se olhares para lá do que um corpo te
pode oferecer, tudo o que resta é para sempre.
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