Portugal vem nos últimos anos sendo abalado por constantes mega-processos judiciais que alcançam um tão elevado nível de mediatismo que, por vezes, paramos para nos questionar se estamos a assistir à realidade a desfilar perante os nossos olhos ou a um qualquer filme de Hollywood!
Em abono da verdade, e com a vantagem do duplo crivo do jornalismo e da advocacia, já assisti, em ambos os lados da barricada, a muitas realidades dignas de suplantar a melhor ficção, mas cabe reflectir acerca dos limites impostos à imprensa na cobertura dos casos ditos mediáticos, na forma como esses limites, ao serem ultrapassados, podem prejudicar ou beneficiar arguidos.
Tendo presente que o nosso sistema penal tem por base o princípio da presunção de inocência, de acordo com o qual, qualquer arguido é inocente até que, em sede de audiência de discussão e julgamento possa ser provada a sua culpabilidade, e, em caso de dúvidas fundadas acerca da prática de determinado ilícito por um qualquer agente, deverá ter-se em linha de conta um outro importante princípio designado in dubio pro reo - de acordo com o qual, se dúvidas fortes surgirem da produção de prova, deverá o julgador decidir a favor do réu/arguido, absolvendo-o, na medida em que se considera menos gravoso deixar um culpado impune, do que permitir que um inocente fique enleado nas malhas da justiça a cumprir pena por um crime que não cometeu.
Da minha experiência como advogada, começo já por referir que, pese embora tenhamos um limite máximo de pena relativamente brando, se comparado com outros países (a pena máxima em Portugal é de 25 anos, não sendo viável fazer subir este período de tempo em cúmulo jurídico, ainda que a mesma pessoa, no limite, cometa vários homicídios de forma intencional e sem qualquer justificação que não seja a pura vontade de tirar a vida a outros seres humanos), a meu ver, podemos retirar algumas conclusões baseadas na experiência pessoal e no nosso sentido crítico ao olhar o mundo:
1ª) qualquer cidadão Português, com culpa ou sem ela, pode ser arguido em processo crime (e mesmo que o final redunde em absolvição, haverá sempre um estigma social negativo associado à condição de arguido, em especial, se estivermos perante crimes mais condenados pela sociedade civil, de que é exemplo a pedofilia ou a violência doméstica);
2ª) visto não existir algo a que se chama perfeição, é perfeitamente possível que um inocente se veja condenado em Portugal;
3ª) Last but not least, é também perfeitamente possível que um culpado seja absolvido (e que atire a primeira pedra qualquer advogado que, tendo a si mesmo confiada a defesa de um arguido, não sinta que cumpriu a sua missão de defensor cabalmente, ao conseguir uma absolvição ou uma pena reduzida ou suspensa);
4ª) Em muitos aspectos, a forma sobrepõe-se ao conteúdo, e os nossos tribunais estão ainda muito formatados para uma certa ritualização que, tantas e tantas vezes, faz perder o foco naquilo que seria o essencial, ou seja, apurar a verdade dos factos, alcançar uma decisão equilibrada e justa!
4ª) Em muitos aspectos, a forma sobrepõe-se ao conteúdo, e os nossos tribunais estão ainda muito formatados para uma certa ritualização que, tantas e tantas vezes, faz perder o foco naquilo que seria o essencial, ou seja, apurar a verdade dos factos, alcançar uma decisão equilibrada e justa!
5ª) Mais recentemente, denota-se uma tendência para o que designo como "justiça feita à pressa", sem rigor, sem cuidado, sem o clássico gosto pelo uso da palavra como arma que deve ser rainha na prática forense, perdeu-se muito do fulgor da escrita jurídica, muito embora esta ainda contemple uma linguagem muito própria e de difícil alcance para quem com a mesma não esteja familiarizado.
Logo, quando estamos perante um qualquer caso mediático, é relativamente fácil verificarmos que o segredo de justiça fica perdido algures na teia de interesses e nas ligações perigosas que envolvem o meio judicial e os media (quem e como se viola diariamente o segredo de justiça?), é tanto assim que já começa a ser brincadeira habitual entre advogados comentar se a instância superior com competência para reapreciar um processo judicial será um tribunal ou certos órgãos de comunicação social cujo nome vou abster-me de citar, mas que são conhecidos e lidos por uma vasta maioria, até por muitas pessoas que são capazes de jurar a pés juntos que não lêem tal tipo de imprensa (ai a hipocrisia politicamente correcta fica bem, mas não convence meus senhores!)
Compreendo que possa ser prejudicial à defesa dos arguidos envolvidos em processos crime complexos a mediatização excessiva e até abusiva de tais casos, mas, por outro lado, não posso deixar de reconhecer a importância que tem para que saibamos em que país vivemos, tomar conhecimento de assuntos que, em última análise são "do interesse do público", mas também "do interesse público", ou seja, ao cidadão comum é legítimo interessar-se por notícias deste teor, mas também é do interesse público que a imprensa dê a conhecer o que de errado se passa neste cantinho à beira mar plantado, que já teve mais moral, bons costumes e valores do que hoje em dia, convenhamos...
Considerando as duas perspectivas, entendo perfeitamente que em termos editoriais seja necessário, muitas vezes em clima de forte pressão, arriscar uma decisão de publicar ou transmitir algo que está algures na linha que separa o "interesse do público" e o "interesse público", e que poderá valer a pena arcar com as consequências (até legais em última análise) de avançar com determinada notícia (recordo em especial uma situação limite vivida há cerca de pouco mais de um ano, quando estando no exercício de funções de directora de um jornal, toda a redacção se manteve reunida em forte tensão, até de madrugada, para decidir se deveria ou não ser publicada uma notícia polémica cujas fontes teriam de ficar protegidas pelo anonimato, acontecesse o que pudesse acontecer).
Todavia, também percebo que a publicação de notícias, ou a divulgação de gravações em video e audio de actos processuais (como publicamente sucedeu recentemente) possa incomodar os responsáveis pela defesa de determinado arguido, possa incomodar algum público anónimo que sinta assim algo fragilizado o sistema judicial Português.
A grande questão é: onde estão os limites? qual o ponto de equilíbrio? até onde é legitimo arriscar? que consequências podem advir desse risco de ultrapassar limites? Infelizmente, não há uma resposta dotada de exactidão matemática para nenhuma destas questões, não existem receitas milagrosas que permitam alcançar a perfeição e a justiça para todas as partes envolvidas, resta a cada um de nós ouvir o que nos dizem as vozes da intuição e da consciência e decidir conforme acharmos mais conveniente, em cada caso, sem certeza de termos tomado a opção mais correcta! É, reconhecidamente, terreno pantanoso este do equilíbrio entre a acção dos media e o segredo de justiça, ou mais amplamente, a ligação entre os media e o sistema penal Português.
Também não tenhamos ilusões, muitas decisões editoriais podem ser tomadas de forma oportunista, com o mero fito de aumentar audiências, em especial, em termos televisivos, quase podemos afirmar que "se não passou na televisão é porque não aconteceu, ou não foi assim como contam". Devo ainda referir que é bastante usual encontrarmos erros graves em termos de conceitos ou regimes jurídicos em muitos artigos de imprensa, erros estes que têm o perigoso poder de desinformar, ao invés de informar o público ( como seria desejável), pelo que considero que a imprensa deveria apostar em fazer o chamado "trabalho de casa" quando publica peças que envolvem temáticas jurídicas ( criminais ou outras) e nem sempre há este cuidado, também porque nas redacções, à semelhança do que vai acontecendo nos nossos tribunais, o rigor técnico fica muitas vezes arredado destas lides.
Uma boa pista quanto à conduta a seguir, considerando os diversos ângulos da questão, na minha opinião, seria a humildade de reconhecer de que nem sempre se ganha, nem sempre se perde e de que nem sempre se acerta nem sempre se erra numa dada decisão ou opção tomada!
Como defendia Sócrates (o filósofo Grego...) resta-me concluir que "Só sei que nada sei!", mas sempre haverá quem se julgue dono da verdade e dotado de uma arrogância própria dos Sofistas!
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