Mesmo
entre seres humanos as palavras frequentemente faltavam em situações destas, e
ele não era um ser humano. Era um animal, e sabia que tudo o que precisava era
de ser. Porque quando o destino é duro, o silêncio fala mais alto do que o
discurso. Ele era um gato, não sabia falar. Mas sabia ouvir no silêncio, tudo o
que não encontrava nas palavras caminho para se expressar. Mais do que ouvir,
ele sentia tudo o que não era dito. E por tudo isso, mesmo antes de o ser
humano que era a sua familia entrar em casa, ele soube. Soube o que tinha
acontecido, soube o que ele tinha perdido. Ouviu como a perda lhe retardava os
passos, tocou-lhe no longo pêlo sedoso a amargura que se libertava da alma
cansada daquele que lhe tinha salvo a vida, e estava agora de regresso a casa
com um pedaço a menos no coração. Alguém que significava muito para o seu dono
tinha perdido a vida, e levado com ele para o outro mundo um pedaço da história
partilhada, deixando no seu lugar apenas as memórias. E o vazio da ausência.
Pensou
em como gostaria de explicar que a morte não significava mais do que a curva da
estrada, em como apenas o corpo se liberta do peso dos sentidos, em como para
lá deles, nada mudou. Mas ele não sabia falar, e sabia que nenhuma dessas
palavras aliviaria o sofrimento. Apenas aumentariam a frustração daquele que
perdeu, porque o vazio foi tudo o que restou. Por isso ficou ali, sentado em
frente da porta, até que ela se abrisse. E quando se abriu e o seu humano
entrou, ele não se mexeu, e apenas a cauda comprida a cortar o espaço traiu a
sua serenidade encenada. O dono entrou, olhou-o com os olhos marejados de
lágrimas por um momento, e disse:
-
Já sabes. Claro que já sabes.
Passou
por ele sem se deter, hesitando apenas por um momento para lhe acariciar a
cabeça felpuda, e dirigiu-se à sala. Uma vez chegado, atirou o casaco pelo ar e
deixou-se cair no sofá como quem acaba de descobrir que a gravidade existe.
Acompanhou-o,
em silêncio. Por uma vez, não miou. Por uma vez, ignorou a tigela vazia que
aguardava a chegada de quem sempre a enchia com um sorriso, chamando-lhe
comilão. Por uma vez, não correu a saltar para o sofá antes que o dono lá
chegasse, e se queixasse de como deixava pêlo por todo o lado. Por uma vez,
saltou para cima do sofá, e apenas esperou.
Quando
procurou os olhos do humano que amava, encontrou-os perdidos; quando lhe fitou
o rosto amargurado, notou os lábios entreabertos num grito que nunca chegou a
acontecer, e que, no entanto, ecoou silencioso por todos os cantos da casa.
Num
impulso, avançou. E silenciosamente (digno de um gato), aproximou-se e
aninhou-se-lhe no colo. E ronronou. Alguns segundos depois, ouviu o dono
soluçar, mas não se mexeu. Esticou-se apenas para encontrar com as patas o
peito que estremecia, e ronronou de novo. Por fim, o seu humano disse:
-
É um buraco tão fundo, tão feito de nada. Parece que vou cair nele e desaparecer
para sempre, parece que é tudo o que existe. E, no entanto... esse ronronar
embala o meu coração. Eu ainda não quero ser salvo deste luto, e, no entanto...
contigo aqui, posso sofrer sem ser julgado. Sem sentir a pena dos outros. Mas
sobretudo, sem estar sozinho.
O
grande gato malhado aconchegou-se mais no seu colo e virou a barriga felpuda
para cima, retraindo e soltando as unhas afiadas como se pressionando uma
matéria sólida e invisivel qualquer. De repente, fixou os olhos no ser humano
que tanto amava, e com eles lhe disse:
-
A morte é uma curva no caminho. Um caminho que se estende para os que vão, e
para os que ficam. E como caminho que é, leva tempo a percorrer. Deves sentir a
perda, permitir que se entranhe no teu peito, deixá-la consumir-te sem reservas
até que a sua força se esgote. Até que tudo o que reste, seja seguir em frente.
E eu estou aqui, tu sabes que estou aqui.
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