O joelho esquerdo
Acontecia que era idolatrado por onde quer que fosse.
Novos e velhos, os benfiquistas e os outros, todos, o reverenciavam e acorriam
a cumprimentar. Quase todos o vinham saudar e mesmo ainda sem a invasão das
máquinas fotográficas nos telefones eram muitos que acorriam a tirar
fotografias abraçando o vivo panteão da glória de um povo sem glórias.
O Eusébio era Deus para os convertidos. Para os ateus,
era apenas O Seu Profeta. O futebolista geria com a humildade possível o
religioso cortejo permanente à sua volta. Ofereciam-lhe garrafas de wiskie, relógios
e camisolas. Ramos de flores, porta-chaves e terços. Ele sorria agradecido sem
saber o que dizer a tanta generosidade.
Em termos de equipamento desportivo as ofertas eram
massivas. Porque nos anos oitenta e noventa, antes da invenção das
grandes superfícies, não havia loja de artigos de desporto que não lutasse por
ter o Eusébio a visitar o estabelecimento. Tiravam fotografias à vedeta
sorridente em várias poses: a cumprimentar o dono, sentado a experimentar um
modelo de sapatilhas, a dar toques numa bola, a segurar numa taça... enfim a
imaginação nunca foi limite. Depois as fotografias eram reveladas e escolhia-se
a melhor para fazer o poster. Ampliava-se e emoldurava-se o Eusébio que ficava
enorme e sorridente, em ponto estratégico, a abençoar o espaço.
O jogador não cobrava pelas visitas. Os donos das
lojas retribuíam com ténis e roupa desportiva. As vezes por graça, saía da loja
vestido e calçado com os presentes oferecidos e a roupa usada à entrada vinha
dentro de um saco de desporto obtido da mesma forma. Assim se acumulavam em
casa caixas e caixas de roupa, sacos de desporto e botas e sapatos de ténis que
o futebolista por princípio não vendia. Dizia: não vendo o que me foi
oferecido. E ia distribuindo o material pela numerosa família, amigos e
conhecidos.
Foi assim que uma prima remota do Eusébio, que era
cabeleireira em Massamá ficou com um fato de treino da nike que usava orgulhosa
aos domingos de manha e uma caixa com uns ténis adidas número quarenta e três. Acontece
que a senhora calçava trinta e sete...
Vivia a dama mais ou menos sozinha ansiando pelas
visitas esporádicas de um cavalheiro retornado que tinha uma empresa de
maquinaria para a construção civil em São João da Madeira e uma família com
filhos numerosos na Maia. O retornado montou-lhe o salão e prometeu-lhe que se
divorciava da mulher e se casava com ela. Os anos passavam e a promessa do divórcio
não vinha.
A prima do Eusébio tinha tanto de exuberante na sua
cor de café com leite, carapinha solta e ancas largas como tinha de tristeza
nos olhos de quem espera. Com o coração desfeito compensava as mágoas em caixas
de bombons de chocolates da Arcádia que o retornado trazia, cumpridor das
pequenas promessas. O tempo passava e os bombons iam ficando armazenados no
rabo imenso da doce cabeleireira triste.
Uma alma assim precisa de consolo quase permanente e paciência
infinita, tanto como chocolates. Por isso consumia regularmente apoio
espiritual e conversas com espíritos ancestrais. Precisamente o ofício exercido
e ministrado pelo mestre ocultista Carlinhos da Matola. Velho feiticeiro
moçambicano, radicado desde os anos setenta num apartamento de duas assoalhadas
algures no concelho de Sintra em morada secreta. O Carlinhos apoiava a cabeleireira
e aturava-lhe as crises. Servia de bengala espiritual nas crises da
mulata senhora e de mais uma restrita e mestiça clientela selecionada. Cobrava
pelas consultas, cobrava pelos trabalhos de feitiçaria e cobrava pelas curas
com ervas. Não cobrava pelos sábios conselhos nem pela paciência. Ia levando a
vida sustentando-se a ele e aos seus sem excesso mas também sem grandes apertos.
Num dia em que foi fazer uma defumação ao salão da
parente do futebolista, estando a senhora especialmente agradecida pelos
serviços, perguntou-lhe:
- quanto é que calça mestre Carlinhos?"
Cioso do sigilo de tudo quanto dizia respeito à sua
vida e guardando sempre um supersticioso respeito pela sua privacidade, o
curandeiro respondeu evasivo.
- Então menina, mas a menina pergunta porquê?
- É que tenho aqui uns ténis Adidas lindos, novinhos
dentro da caixa que ofereceram ao meu primo...e se lhe servirem, são seus...
- Calço quarenta e três, mas não posso usar sapatos
calcados por outro homem, porque a minha alma de feiticeiro vai buscar tudo
quanto é doença daquele que andou com os sapatos antes de mim.
- Ó Mestre, eu não lhe ia dar uns sapatos usados...nada
disso! São novos. Novinhos em folha. Ainda estão dentro da caixa.
Esvoaçante e pesada, gingou coquete as ancas até
dispensa onde guardava os artigos de limpeza e as tintas do cabelo. Voltou com
a caixa branca de cartão com os sapatos dentro e letras a preto escritas em
cima. Envoltos em papel estavam os ténis. Eram lindos. De cabedal e cozidos com
pontos certinhos, brancos e azuis. Cheiravam a novos e na loja custavam uma
fortuna.
O feiticeiro apesar de ter ultrapassado há muito as
suas setentas voltas ao sol conservava o bom gosto de se achar bonito. Quando
pegou nos sapatos desportivos ouviu as vozes dos espíritos sussurrarem: não
aceites. Imediatamente percebeu que o Eusébio já tinha calçado aqueles sapatos.
Mas os ténis eram bonitos, bons e ainda por cima deviam ser extremamente confortáveis.
O velho senhor não resistiu e aceitou a oferta. Por pudor não os calçou
logo.
Na manha seguinte, depois do seu banho e matinais
obrigações de curandeiro, calçou as Adidas. Vaidoso e sorridente saiu de
casa. Não tinha andado nem cinquenta metros. Simultaneamente sentiu e ouviu
estalar no joelho esquerdo a engrenagem de carne que se partia. Qualquer coisa
entre ossos e tendões. Logo a seguir ao som, chegou a dor, penetrante como uma broca.
Contrariando por vaidade, mas claramente a coxear, seguiu o seu caminho até à
pastelaria de todos os dias na esquina de todas as manhas onde lia o
jornal e comia o queque com a meia de leite. Entrou e sentou-se na mesa do
costume e esperou que o servissem mesmo sem ter feito o pedido.
Amigo do velho, pintas, agnóstico e “confiançudo”, o
empregado desviou-se da perna esquerda esticada inoportunamente na estreiteza
do estabelecimento. Não reparou nos ténis novos do feiticeiro, apontou o joelho
e brincou:
- Então Sô Carlos, andou a jogar à porrada com algum
espirito?
- Nada disso menino, foi da pancada que levei no jogo
contra a Inglaterra.
Riram os dois.
O empregado ficou a pensar no reumático quem nem os
bruxos poupa e o feiticeiro sorriu satisfeito de poder dizer a verdade.
Sem comentários:
Enviar um comentário