Pensei
que nada seria mais relaxante do que um passeio de barco, naquele dia. O sol
reinava, forte, num imenso céu azul, e nem uma nuvem mais atrevida se fazia
notar no horizonte. Munida de protector solar e de um imenso chapéu de palha -
que dificilmente teria usado noutras circunstâncias – apreciava o brilho da
superficie calma das águas, e as pequenas ondulações causadas pela embarcação
que embalava o meu passeio.
De
repente, algo chamou a minha atenção e me fez endireitar na proa: umas poucas
dezenas de metros adiante, na superficie da água, algo parecia mover-se ao
sabor da corrente. O que seria? Curiosa, esperei que o barco se aproximasse. O
que quer que fosse que estivesse ali, parecia tão depressa deslocado naquele
cenário, como dissolver-se nele. Como se de repente, um intruso tivesse
decidido munir-se de todas as sus capacidades de camuflagem, para se infiltrar
num ambiente ao qual não pertencia.
Assim
que fiquei próxima o suficiente, porém, mal tive tempo para inspeccionar o
estranho corpo. Assim que me inclinei na borda do barco, ele submergiu. Como se
algo vindo de baixo o tivesse subitamente agarrado e puxado para as
profundezas.
Não
tive tempo para pensar sequer no que estava a fazer: subitamente, estendi o
braço para dentro de água, no último segundo em que me teria sido possivel
agarrar o que quer que fosse que aquilo era, e precisei de todos os meus
reflexos para que a superficie lisa e escorregadia não se me escapasse por
entre os dedos. Havia realmente algo a puxar do outro lado, mas eu sentia que
não podia deixar isso acontecer. Por fim, com o auxílio da outra mão, consegui
erguer no ar o que agora conseguia ver que era um saco de plástico. E na outra
extremidade do saco, pendurada pelo bico, uma pequena tartaruga marinha
debatia-se vigorosamente, com as patas traseiras quase tocando a água. Sem
largar o seu prémio, gritou por entre as mandíbulas cerradas:
-
“Arga ixo!”
Quase
larguei o saco quando a ouvi gritar comigo, mas consegui evitá-lo. Ela ainda
não entendia o que tinha acabado de acontecer? Irritada, puxei-a para dentro do
pequeno convés, onde se ficou a debater sem largar o saco. Respirei fundo, e
disse-lhe:
-
O que achas que é isso?
Ela
olhou-me de lado, visivelmente zangada e desconfortável. Por fim, largou o saco
e colocou sobre ele a carapaça, para ter a certeza que não lhe roubava o
almoço. Respondeu:
-
Eu vi esta água-viva primeiro, é minha!
Surprendida,
percebi finalmente o que se estava a passar. Disse-lhe:
-
É isso que pensas que isto é? Uma água-viva?
A
tartaruga pareceu ficar confusa, mas não se deu logo por vencida:
-
Claro que é uma água-viva, que outra coisa poderia ser?
Subitamente,
senti pena dela. Na ânsia de se alimentar, poderia perfeitamente ter assinado a
sua sentença de morte, se não nos tivéssemos cruzado. Respirei fundo e
aproximei-me dela, o que fez com que se arrastasse ainda mais para cima do
saco. Disse-lhe:
-
Isso não é uma água-viva. Não vês que em vez de gelatinosa, é dura e
escorregadia? Que é da mesma cor dentro de água, mas não possui tentáculos?
Ainda
desconfiada, a pequena tartaruga olhou o saco que guardava debaixo de si. Uns
momentos mais tarde, procurou os meus olhos e vi nos dela o terror de quem
acaba de se aperceber que podia ter perdido a vida. Afastou-se desajeitadamente
do saco pousado no convés, e disse:
-
O-o que é isto?
Sorri
com ternura, infelizmente sabia demasiado bem que por todo o mundo, todos os
dias, milhões de animais perdiam a vida por ingerirem plástico, darem-no a
comer às suas crias ou por ficarem irremediavelmente presos ao terrivel
desperdício humano, que estava já um pouco por toda a parte.
Respondi:
-
Plástico. Um desperdício humano que a minha espécie tarda em perceber que não
deve simplesmente largar por aí.
Ela
olhou de mim para o saco, e do saco para mim de novo:
-
Se não fosses tu... eu poderia ter morrido sufocada com isso!
Eu
olhei-a, e senti a tristeza transbordar dos meus olhos directamente para o
convés entre nós, sob a forma de gotas salgadas. Suspirei, e disse:
-
Não. Se não fosse a negligência consentida da minha espécie para com a tua, nunca
terias encontrado este saco.
Subitamente,
ela pareceu crescer. Já não era uma jovem tartaruga assustada, mas um ser
marinho majestoso, munido de um olhar profundo e solene. Apoiada nas barbatanas
dianteiras, endireitou a cabeça e disse:
-
Enquanto um de vós se importar, um de nós será salvo; enquanto um de vós não
entregar o seu lixo ao mar, haverá esperança; enquanto um de vós partilhar com
o mundo a importância de respeitar o ambiente, nós teremos voz.
Abri
a boca para falar, mas ela não tinha terminado:
-
Diz-lhes. A todos aqueles que lutam por nós, e por este planeta que é a nossa
casa:
“A
ti, que recolhes o plástico do chão mesmo quando não te pertence, evitando que
alcance os esgotos, estamos gratos; a ti, que caminhas pela praia com um saco
na mão, e evitas que as garrafas de plástico entrem no mar mesmo que pra isso
tenhas que as carregar durante quilómetros, estamos gratos; a ti, que procuras
educar os outros a respeitar-nos, mesmo quando escolhem não te ouvir, estamos
gratos; a ti, que procuras resumir o uso do plástico ao essencial, estamos
gratos; em ti, que respeitas as outras espécies como a ti mesmo, sentimos
orgulho. A ti, que te desviaste do teu caminho para ajudar um animal em apuros,
damos vivas.”
Interrompeu-se,
apenas para suspirar e acrescentar:
-“A
ti, que te importas... para ti, que nenhum gesto de boa vontade é pequeno
demais... nós estamos a ver. Caminhamos contigo. Nós sabemos quem tu és. E
contamos contigo.”
Vanessa
Lourenço
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