domingo, 29 de dezembro de 2019

A CRIANÇA PERDIDA EM NÓS, de Cristina Das Neves Aleixo
















Em comemoração do Dia da Criança, é importante que façamos alguma reflexão sobre a forma como vivemos esse período tão precioso da nossa existência.

Quando somos jovens desejamos crescer e tornarmo-nos adultos. É um dos desejos mais fortes e mais comum à maioria. Acreditamos que esse estatuto nos abrirá definitivamente a porta para decidirmos e fazermos tudo o que quisermos, da forma que quisermos, sem “dar cavaco” a ninguém. Cremos que seremos donos e senhores dos nossos destinos, da razão e transpiramos idealismo por todos os poros.
Depois crescemos, alcançamos o almejado lugar na sociedade e vivemos o resto das nossas vidas a desejar ser crianças. Passamos de idealistas a saudosistas e lamentamos o pouco tempo vivido em brincadeiras e interacções despreocupadas e isentas de julgamentos.

Algo está muito errado, creio. E não acho que seja porque o período da meninice é curto, mas sim pela forma como o vivemos e, mais importante, somos preparados para a etapa seguinte.

Senão vejamos: nessa fase ocupamos noventa por cento do tempo a ser programados para o futuro, para uma promessa de vida maravilhosa e plena, e dez por cento a brincar e a dar asas à criatividade com que todos naturalmente nascemos. Somos constantemente bombardeados com a definição instituída das boas maneiras – leia-se o politicamente correcto -, para seguir todos os “bons” exemplos e normas, ao invés de aceitarmos e nos complementarmos com as diferenças, pensarmos pelas nossas cabeças e fazermos algo para mudar o que está errado. Desde tenra idade é-nos imposto um modelo educacional semelhante ao cinzentão modelo empresarial vivido diariamente pelos adultos, com uma carga horária muito superior à que devia ser praticada, onde o tempo que se dedica ao estudo ocupa a grande parte dos nossos dias, impedindo-nos de sentir o outro, a chuva e o sol na cara, de descobrir o mundo que nos rodeia com todos os sentidos, de pulsar em uníssono com o planeta e somos muito mais repreendidos do que elogiados.

Não admira que em miúdos desejemos ser adultos, com a esperança de finalmente sermos livres para podermos respirar e sonhar.

O problema é que aí chegados percebemos que o futuro prometido era um embuste, que as cores se desvaneceram com a educação automatizada e, extenuados que estamos pela lavagem cerebral constante, baixamos os braços e passamos a viver a preto e branco, resignados, iguais a todos os outros, apontando o dedo quando todos apontam e aplaudindo, sem convicção, quando todos aplaudem.

De vez em quando, num ou noutro segundo, as cores, a nossa essência adormecida, espreitam e recordamos com saudade o tempo em que nos sentíamos capazes de tudo, para imediatamente pensarmos que já é demasiado tarde.

O mais curioso é que ao termos filhos nada fazemos para quebrar este ciclo de destruição da essência humana e da felicidade.

Ao invés, tornamo-nos parte da máquina na aniquilação dos sonhos e da verdadeira realização.
Somos a maldita máquina.

Somos crianças presas e perdidas em corpos crescidos.

“Miúdos e graúdos: se nos deixarmos revisitar, de vez em quando, pelo mundo encantado tornamo-nos pessoas melhores e mais felizes.”
in Joaninha e o jardim encantado     

sábado, 28 de dezembro de 2019

UM NOVO ANO, de Fernando Teixeira















Estamos a chegar ao fim do ano e na eminência de dar início a um outro, por sinal um dia mais longo por ser bissexto. É altura para equacionar como se irá passar deste para o novo ano que aí vem. Mas também é tempo de cada um fazer uma reflexão sobre o ano que termina e equacionar o que deseja para o próximo.

Olhando para trás, parece que tudo passou tão depressa. É como uma espécie de efeito Doppler do tempo. Perspectivando o futuro, especialmente algum momento mais agradável que aguardamos com ansiedade, como umas férias ou uma viagem, temos a impressão de que o tempo anda mais devagar e que o almejado momento nunca mais chega. Ao invés, quando pensamos no passado, ficamos com a ideia de que o tempo voou célere, que nem demos por ele passar e custa-nos a crer que determinados eventos já ocorreram há tanto tempo, parecendo-nos que foi há muito menos. Custa acreditar que a Democracia foi instaurada há mais de quarenta e cinco anos, período superior a metade do tempo de vida da grande maioria das pessoas, que já passaram mais de vinte e um anos desde a EXPO98, ou que há vinte anos, precisamente, andávamos preocupados com as repercussões daquilo a que se chamava o bug do milénio. Afigura-se-nos de que foi há muito menos tempo… A verdade é que, num abrir e fechar de olhos, passaram já vinte anos deste séc. XXI!

Da mesma forma célere, a vida passa pelos nossos progenitores, pelos nossos filhos, por nós. Uns envelhecem mais depressa do que desejaríamos, outros passaram de crianças a adultos num ápice. Parece que os nossos rebentos ainda ontem andavam a aprender a ler e a escrever e hoje já frequentam universidades ou até já se formaram. Ainda ontem viviam sob o nosso tecto e hoje já têm a sua vida organizada, vivem sozinhos noutra casa ou em comunhão com a sua companhia de eleição.

Os anos vão passando por todos nós. O tempo vai transformando as nossas vivências, trazendo alegrias ou tristezas, sucesso ou infortúnio, a ambicionada saúde ou indesejáveis doenças. 2019 chega ao fim e cada um de nós experimentou momentos melhores ou piores durante o seu decurso. Com a passagem do tempo e da idade, também a forma como vemos o que acontece à nossa volta e a forma como reagimos aos mais diversos estímulos e notícias são diferentes.

Foi um sopro. Parece que ainda ouvimos ecos do último réveillon, da festa, do fogo-de-artifício e do toque de copos brindando ao novo ano. Ainda lembramos as passas de uva, os desejos, as promessas. Lembramos especialmente aqueles que festejaram connosco e que já não o podem fazer na próxima Passagem de Ano, o vazio e a falta que nos fazem. Mas andamos já afadigados a programar o próximo réveillon, se ainda não o fizemos, ou pura e simplesmente não temos nenhum programa especial para essa meia-noite, ela sim, especial por ser uma noite de transição de ano no calendário. Quanto mais não seja, talvez uns camarões e uma garrafa de espumante para fazer desse momento uma festa, em casa, com alguns familiares e amigos…

Nesta altura do ano, fazemos votos de que o novo ano traga paz, saúde, sucesso, alegria, dinheiro, a concretização de sonhos e projectos… Desejamo-lo aos outros e esperamos que o mesmo aconteça connosco. Desejamos apenas as coisas boas porque as más, de uma forma ou de outra, não estamos livres delas, fazem parte da nossa natureza e do acaso, ou do azar, e apenas esperamos que não venham bater à nossa porta. Ignoramos as coisas ruins da vida para que não se lembrem de nós. Por isso, nas mensagens e cartões que se enviam a desejar um bom Ano Novo, mais aquelas nos dias de hoje, falamos somente nos aspectos agradáveis da vida.

Com este espírito, desejo a todos os leitores desta crónica um EXCELENTE ANO DE 2020! Que ele seja muito gratificante para todos vós!

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

FELIZ ANO 2020, de MBarreto Condado
















Está decidido! 

Vou subir a fasquia.

A partir do próximo ano, quero mais de trinta e três mil pessoas a correrem para as livrarias e para as salas de cinema de todo o mundo para assistirem aos lançamentos e posteriores estreias dos meus filmes.

Como decisão de Ano Novo, vou colocar mais tons de cinza em tudo o que escrevo. Aos mais susceptíveis peço desde já que me perdoem, mas os meus livros vão ser um deboche de sexo, vícios, sadismo, multimilionários, beleza, acção, intriga, mortes e alguma ausência de cérebro (afinal existem tantos exemplos à minha volta e eu detesto desperdiçar bom material de escrita).  

Por todos estes motivos neste novo ano a cada badalada e ao esforço descomunal que faço para comer as malditas passas, os meus desejos serão (não sei se os devia manter em segredo para se realizarem…logo se vê):

1º - Que estes desejos se apliquem na mesma medida aos seguintes colegas de percurso: Maktub, Flaps, Clarabela, Maléfica, Eragon, Fiona, Simba e Rapunzel;

2º - O Euromilhões (não deixa de ser uma opção);

3º - Um Chef com bons abdominais para que a comida não perca a textura;

4º - Um Jardineiro com excelentes bíceps para que tenha força para aparar a relva e podar as árvores;

5º - Um poço com Crocodilos treinados, à volta do terreno para que a um sinal meu impeçam a aproximação de almas penadas;

6º - Que os caçadores continuem a vir aos dias autorizados, mas em vez de armas tragam comida e água fresca para os animais;

7º - O Euromilhões (continua a ser uma opção);

8º - Lenhadores para retirarem todos os eucaliptos e colocarem florestas de Sobreiros, Castanheiros, Oliveiras, Carvalhos, Freixos, Choupos, Ulmeiros e muitas Árvores de Frutos;

9º - Que as Processionárias e as Vespas Velutinas se matem numa luta impiedosa sem sobreviventes destas duas espécies;

10º - Três guarda-costas para afastarem os mirones, mas principalmente os Paparazzi;

11º - O Euromilhões (ainda não deixou de ser a melhor hipótese);

12º - Conseguir engolir a última passa sem ter que voltar a ver a primeira.

Que o próximo ano vos traga o que desejam, a menos que tenham sido umas bestas, nesse caso em vez de comerem as malditas passas recomendo que passem as badaladas como nos anos anteriores bêbados.  

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

CONSOADA, de Fernando Teixeira















O meu avô alguma vez lhe disse que andou perdido no meio do nevoeiro, durante a pesca na Terra Nova?, era a pergunta que lhe apetecia fazer à mãe, porém sabia que essa questão iria perturbar uma consoada que se pretendia em paz e harmonia. Não a tinha feito antes, sem que ele pudesse apontar uma razão válida para isso, apenas porque não tinha querido, e agora o bom senso pedia que esperasse um pouco mais.

Vasco tinha ido ao Dafundo buscar a mãe e com ela viajara até à Ericeira, nessa manhã, para que a família estivesse reunida na véspera e no dia de Natal. Embora a irmã tivesse frisado que não precisava de colaboração e que podia muito bem fazer tudo sozinha, o marido estava lá se fosse preciso, a mãe insistira em ir mais cedo para ajudar na preparação da consoada. Ele achava que até faria bem à mãe participar na azáfama de fritar sonhos, filhoses e rabanadas, pelo que se prontificou a que viajassem logo de manhã.

Felizmente, a casa de Teresa tinha um sofá-cama que podia ser usado pela mãe. Ele reservara quarto num hotel modesto de três estrelas, que para passar apenas uma noite não era preciso nada de especial.

Talvez falasse sobre o avô no dia seguinte. Na verdade, não acontecia com frequência estarem todos juntos e ele gostava de trocar algumas impressões com a mãe e a irmã, em simultâneo.

À falta de assuntos que pudessem suscitar algum melindre, o jantar decorreu com tranquilidade. Como ementa, o tradicional bacalhau cozido com batatas, couves e ovos às rodelas, alho picado, salsa, azeitonas e broa de milho para molhar no azeite. Uma das garrafas de vinho tinto, que Vasco levara, regava jantar e conversas avulsas. Para tornar o ambiente ainda mais festivo, Teresa colocara velas esguias em centros de azevinho artificial e acendera-as, reforçando o ar natalício da mesa. Num aparador, o presépio abençoava a reunião familiar e, a um canto, encontrava-se o pinheiro, decorado com enfeites e luzes coloridas que produziam reflexos intermitentes nos copos e nas superfícies envidraçadas da cristaleira. Junto à base do pinheiro, alguns embrulhos faziam o sobrinho Pedro ansiar por que chegasse a meia-noite.

João acendera a lareira e o calor enchia a sala e os corações.

Por breves momentos, Vasco ficou a olhar para a sua posta de bacalhau, reflectindo como agora podiam ter uma mesa farta desse peixe, ao contrário do que acontecia no tempo do seu avô que, por muito bacalhau pescasse e comesse até enjoar, durante as duras campanhas, ironicamente, não se podia dar depois ao luxo de o comprar e ter na sua própria casa, devido ao elevado preço para as suas posses.

Lembrou-se também do pai, que há oito anos faltava na mesa de consoada, e pensou que certamente cada um dos presentes estaria a sentir também no íntimo, de alguma forma, a ausência dos parentes falecidos.

Quando terminaram o prato principal, ele levantou-se e foi ajudar a irmã a levar a louça suja para a cozinha. Substituíram as travessas de comida por pratos com os fritos de Natal feitos durante a tarde, broas e um bolo-rei que a mãe comprara. Teresa tirou da cristaleira uma garrafa de vinho do Porto, uma de licor e outra de whisky.

Depois de servir a mãe e a irmã com um cálice de Porto, ele e o cunhado optaram pela bebida de malte. De vez em quando, Pedro consultava o relógio para ver quanto tempo ainda faltava para a troca de prendas.

Finalmente, chegou o momento da noite mais desejado para o sobrinho. A sua irmã tivera o filho já ia avançada na idade dos trinta e Pedro estava a um ano de atingir a maioridade.

– Vá, Pedro, começa a distribuir os presentes! – incentivou o tio.

O rapaz levantou-se da mesa, dirigiu-se à árvore de Natal e começou a distribuir os embrulhos pelo nome da pessoa a que se destinavam.”

in Por Entre As Brumas De Newfoundland

NOTURNO ARCO-ÍRIS – CARTILHA PARA UMA BRUXA BOA, de Helder Menor















Aconteceu em Alcoutim, mil novecentos e cinquenta e oito, as cartas tinham avisado, grande amor seguido de tragédia.
Os corvos a darem o sinal. Aquele grasnar parvo e estridente no cimo dos pinheiros mansos que ao lado da casa no verão fazem sombra e no inverno aparam a chuva. Foi num dia de nevoeiro em que mesmo à tarde é sempre de manhã.
Ainda antes dos corvos a avisarem, nessa manhã cedo, quando cortou o pescoço à galinha pedrez, o sangue que jorrou desenhou uma seta no chão do quintal apanhando um bocado da parede da casa, mesmo por baixo da janelinha pequenina que era a janela do quarto. Uma seta são novidades. A Carla na altura nem reparou no recado que a galinha escreveu ao morrer.
Mas nos corvos em cima dos pinheiros teve mesmo de reparar: a grasnarem e a darem sinal que alguém se aproximava pelo lado do rio. No inverno o rio ainda é mais misterioso com as águas agitadas e escuras. Quando está nevoeiro, o rio torna-se mágico. Do lado de lá os montes da Espanha, do lado de cá os cerros do Alentejo.
A casa onde ela vivia há já três anos, cresceu plantada já fora da vila, uns bons trezentos metros afastada das outras casas. Carla ouviu os corvos. Estava na cozinha a amanhar a galinha que ia fazer em duas refeições: canja para ela ao almoço e assada no forno para o jantar do marido. Não tinha filhos porque nunca lhe aparecerem. O marido queria muito, mas ela não queria, secretamente tomava uns diários comprimidozinhos que lhe arranjavam vindos de Espanha e que lhe tiravam as dores menstruais e outros incómodos, incluindo os incómodos de uma gravidez. Com os verões a passarem e a coisa a não se concretizar, o querer frustrado do guarda, tinha-os afastado. O guarda vivia distante no seu universo de armas, apreensões e progressões. A Carla sentia-se como empregada doméstica, governanta e puta em exclusivo do marido, que mesmo não falando praticamente com ela a procurava para se satisfazer regular e disciplinadamente ao sábado e à quarta-feira. Tinha no baralho de cartas com que fazia paciências e lia o futuro o seu confidente. Não sabia ler e queria aprender. Queria aprender a ler com a mesma força com que o guarda fiscal, seu marido queria deixar descendência.
Naquela manhã, quando os corvos gritaram com insistência, a Carla já tinha o bicho depenado e aberto, tirou-lhe o fígado, o coração, a moela e os ovários para fazer a sopa. O fel tirou-o com cuidado para não se romper e escondeu debaixo das penas atirando cinza para cima para que o amargo não se espalhasse mais na sua vida. Coisas antigas que aprendera com a avó, bruxa e curandeira em Estarreja que lhe tinha ensinado rezas, mezinhas, a entender os sinais dos bichos e a ler o passado, o presente e o futuro nos baralhos de cartas.
Os corvos estavam definitivamente a anunciar gente.
O marido estava de serviço. Tinha saído logo de manhã para o posto da Fiscal onde era cabo e mandava. O marido mandava mais como cabo da Guarda Fiscal do que o presidente da câmara ou do que o notário. Não que ali houvesse notário..., mas o marido mandava mais. O marido manda, põe e dispõe.  Porque o marido é a autoridade. O cabo da Fiscal mandava e mandava muito, ali naquele ermo perdido no cu do Alentejo, chegava a mandar mais do que alguns sargentos em Beja.
De qualquer maneira, sabia que o marido só vinha à noite.
Sabia que o marido ia chegar às sete da noite, ia lavar-se, depois jantava sozinho. Acabado o jantar ouviam os dois a telefonia, ele ia dizer-lhe que se queria ir deitar e ela ia com ele. Como era segunda-feira ele não a ia querer usar e por isso ia ler três páginas nas letras pequenas da bíblia e adormecer. Ela ficaria acordada a pensar na vida que leva onde não acontece nada. Ia ser assim. Para a Carla, saber como ia ser o seu dia e a sua noite, deu-lhe uma ânsia tal que sentiu vontade de vomitar ou de gritar ou de se atirar para o chão a chorar. Não fez nenhuma das coisas.
Atirou as tripas quentes da galinha para dentro da lata do lixo e os intestinos da galinha fizeram um círculo perfeito sobre o qual caíram dois bocados de pulmões. Ela não leu o sinal, estava demasiado ocupada com a sua dor para ler as vísceras. Por isso os corvos voltaram a gritar para a avisarem.
Com a insistência dos pássaros, a Carla abriu a porta da cozinha e saiu para o pátio com as mãos quentes das vísceras da galinha a fumegarem no frio. Olhou para os lados de Espanha e do rio e não viu nada. Uma cortina de nevoeiro denso envolvia a casa, as árvores e o rio. Os corvos voltaram a dar sinal e o podengo veio ter com ela a abanar o rabo. Depois o cão virou-se e ladrou para dentro do nevoeiro na direção do rio. A Carla percebeu que se aproximava um barco. Ao longe ouvia-se os remos na água. Ficou à espera.
Ouviu-se o barulho da madeira do casco a bater na rocha que no inverno quando o rio ia cheio servia de ancoradouro. Ouviu-se o som de um fardo a cair na pedra e depois dois pés pesados a pisarem o chão molhado de pedras grandes. Outra vez os remos do barco a afastarem-se. Passos subiram a encosta e no nevoeiro soou a respiração pesada de alguém que subia cansado e carregado. Três minutos depois conseguiu distinguir o perfil de quem se aproximava.
A Carla não teve medo. Qualquer coisa que lhe acontecesse seria bem-vinda para sacudir e afastar aquele tédio cinzento que a matava.
Era um rapaz novo que chegava. Nem teria vinte anos. Disse bom dia em português com sotaque espanhol. Pousou no chão o saco que carregava às costas e afagou o podengo que se esqueceu de cumprir a sua função de cão de guarda e saltava contente às pernas do moço. A Carla olhou-o de alto a baixo e perguntou-lhe o que queria.
-        Só passar aqui neste sítio – e apontava para baixo para o nevoeiro e para o rio --- pois se aqui é a casa do guarda, e se o guarda está no posto, aqui é o melhor sítio para passar.
Dito isto, soltou uma gargalhada aberta que soou no nevoeiro calando os corvos e o podengo que persistia em esfregar-se-lhe as botas molhadas. Apresentou-se:
-        Sou o Raul, nascido na raia de Castro Marim há dezanove anos, três meses e seis dias, pescador quando o rio deixa, contrabandista quase sempre, maltês às vezes, ladrão quando é preciso, mas sempre bom rapaz!
A Carla também se riu. E soube-lhe bem rir-se, coisa que não fazia há muito tempo. Também ela se apresentou:
-        Sou a Carla, nascida em Ovar, casada na capela da Senhora da Natividade na Murtosa com o Cabo Justino da Guarda Fiscal. Dona temporária desta casa, bruxa por herança, mas proibida de exercer pelo padre que me casou. Não digo a idade porque já só me faltam dois anos para fazer os trinta.
Limpou as mãos ainda sujas das vísceras da galinha ao avental e estendeu os dedos na direção do contrabandista.
Num gesto de galanteria improvável naquele profundo fim-do-mundo, o rapaz pegou-lhe na ponta dos dedos e levou a mão dela aos lábios. Os beijos na ponta dos dedos incendiaram a Carla por dentro e a fogueira que se acendeu nela subiu-lhe da parte interna e baixa da barriga até à cara que num instante ficou vermelha. Sem saber o que dizer, a boca abriu-se quebrando o silêncio para lhe sair:
-        Vens molhado moço! Entra para te secares antes que apanhes alguma pneumonia.
Porque era bem-mandado, o Raul entrou pela porta da cozinha que se lhe abria e aproximou-se do lume. Ela, um gesto de familiaridade quase maternal tirou-lhe o casaco. Depois aconteceu algo que que só se pode justificar por um oportuno e inesperado surto de loucura: de uma forma já nada maternal, continuou a despir o rapaz. Ele calado com os olhos muito abertos de deslumbramento... quando ela acabou de o despir a ele, despiu-se também, pegou-lhe na mão e levou-o para o quartinho pequeno da cama de ferro onde passava as noites sem dormir ao lado do marido.
Aconteceu o inevitável, que talvez fosse evitável se aquele encontro não tivesse sido assim parido naquela manhã nevoeiro. Mas o certo é que aconteceu. E aconteceu bastante e bem feito, diga-se em abono da verdade para os dois participantes nos factos. Tão bem feito que quiseram repetir. E repetiram. Repetiram logo a seguir, repetiram depois da canja e não repetiram depois do cálice de vinho do porto que a Carla foi buscar ao armário, porque o Raul teve que ir.
Foi prometendo voltar.
Cumprindo a promessa voltou várias vezes.
Muitas vezes.
Sobretudo nas noites em que o cabo estava de serviço.
O rapaz passava o rio. Subia com a carga que acomodava debaixo dos pinheiros e entrava para as sopas, o conchego da Carla e o cálice do Porto.
Assim aconteceu durante aquele inverno comprido.
Um dia ela disse que gostava de aprender a ler... Ele passado duas noites apareceu com uma Cartilha João de Deus e depois do amor, ensinou-lhe as letras.
Ela para retribuir, ensinou-lhe os segredos das cartas e dos chás.
Ela na primavera já conseguia juntar as sílabas, interpretar palavras e escrever o seu nome.
Ele por essa altura já tinha aprendido a esfregar as mãos e os pés com banha de raposa para que não lhe seguissem nem os passos nem os gestos.
O rapaz aprendia depressa as regras da bruxaria, quase tão depressa como a bruxa aprendia a ler.
A Carla andava feliz, o Raul andava feliz. Até o cabo da guarda se sentiu mais animado na felicidade da mulher. Tentou aproximar-se dela, mas ela evitou-o.
Um dia, meteu-se na camioneta, avisou a mulher que não vinha jantar e foi a Setúbal à igreja da Senhora do Carmo oferecer uma vela à nossa Senhora do Carmo, padroeira da Guarda para que a mulher se emprenhasse.
Quando voltou no dia seguinte, tentou deitar-se com ela, mas mais uma vez a Carla o evitou.
A primavera chegou luminosa e o verão apareceu quente.
Uma noite clara, quando o guarda fiscal chegou a casa encontrou a mulher a dormir nua e destapada sobre a cama que era dos dois. Despiu-se e abraçou-a. Eu ainda lhe retribuo o abraço, mas depois abriu os olhos, acordou e rejeitou-o.
Ele zangou-se com ela e disse-lhe que ela com a mania de aprender a ler, estava a perder a decência que agora até dormia como as devassas sem camisa de noite. Ela justificou-se com o calor. Ele pediu desculpa, coisa que para o cabo da guarda era difícil fazer e voltou a tentar o abraço. A Carla voltou a esquivar-se.
Andaram assim uns dias, o Raul quando chegava pergunta-lhe o que tinha. Ela dizia nada. As cartas a insistir com o às de copas e o nove de outros: grade amor e tragédia.
Numa noite clara e quente de verão, a Carla preparou-se para se deitar, pois, o marido devia chegar por volta das onze da noite e ela queria poder fingir que já estava a dormir. Mas o guarda chegou mais cedo. Vinha ébrio de vinho e desejo, agarrou-a à força e violou-a. Ela chorou até ser dia e ele dormiu satisfeito até que o despertador o chamasse para ir impor a sua farda.
De manhã, ela jurou que não voltaria a acontecer.
À tarde o guarda voltou satisfeito e percebendo que a mulher continuava em lágrimas, abraçou-a por trás quando ela lavava a loiça dentro do alguidar de barro. Ela num movimento que nunca saberemos se foi premeditado ou instintivo, voltou-se com uma faca na mão e tentou esfaquear o guarda que lhe deu uma bofetada tremenda. A bofetada fê-la cair quando bateu com a cabeça no chão encontrou a morte que as cartas lhe tinham anunciado.
O Justino, cabo da Fiscal teve de chamar a Republicana. Depois veio um médico.
Um acidente, assim determinou o relatório assinado pelo médico que ignorou as marcas dos dedos do cabo na face da morte. Ela caiu. Escorregou na água com sabão que molhava o chão e aconteceu o trágico acidente.
O cabo da guarda Justino, depois do funeral da mulher, foi embebedar-se. De dor, disseram compreensivos os que assistiram.
De remorsos, disseram as cartas ao Raul.
A bebedeira continuo e durou mais seis anos. O tempo de a morte chegar por cirrose, antes ainda da destituição e expulsão da guarda.
O Raul quando soube da tragédia ficou doente. Febres e dores no corpo que o deitaram na cama durante três dias. Depois levantou-se e andou pelos matos perdido durante uma semana, falava para as pedras e para as moitas. Os pássaros respondiam-lhe. Voltou feito bicho, parecia um ermitão.
Hoje é um cavalheiro com mais de oitenta anos que construiu um império no sotavento algarvio. De contrabandista, a comerciante, de comerciante a empresário e de empresário ao velhinho sábio e supersticioso que é hoje. Vive rodeado dos filhos, dos netos e dos bisnetos.
Uma tarde, antes de me contar a história da sua vida, perguntei-lhe:
-        Senhor Raul, arrepende-se de alguma coisa na sua vida?
-        De não ter morto um cabrão dum guarda!

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

ERA UMA VEZ..., de MBarreto Condado















Quem nunca se apaixonou perdidamente por um livro e pelo seu criador?

Desde o momento em que o tiramos de uma qualquer prateleira, o folheamos, o cheiramos, apercebemo-nos que têm um cheiro distinto.

Quando começamos a ler deixamos de existir e passamos a fazer parte de um novo mundo que se abre delicadamente para nos receber.

Cada parágrafo é um novo momento de uma nova existência, passamos a aceitar os vilões como nossos inimigos mortais. Identificamo-nos quase sempre com os seus heróis, que têm tanto de nós ou de que gostaríamos de ser.

Transformamo-nos num simples virar de páginas, com novas promessas, desejos. Passamos a fazer parte de um novo mundo.

Damos por nós sem conseguir dormir. Só mais um capítulo! Só mais um capítulo!

Parar, é como deixarmos esta nossa nova existência num limbo, sabendo que temos que completar a nossa jornada. A mesma que nos reserva segredos nas páginas que vamos folheando lentamente e onde alguém tal como nós se deixou perder nos cantos mais distantes dos mundos, que até então só viviam na imaginação do seu criador.

Ler, é como uma viagem sem fim, um local para onde podemos sempre partir e só regressar se quisermos. Pois a seguir a uma viagem vem sempre outra, e outra, dando-nos a possibilidade de nos recriar quantas vezes quisermos.

Por esse motivo quando me perguntam porque escrevo? O que me motiva?

A minha resposta só possa ser uma: Porque estou viva e vivo através das palavras. 

Sou um produto de tudo o que já li, de tudo o que vivi, das pessoas com quem me cruzei. E esta é a altura de levar comigo através dos meus mundos quem me queira seguir. E tal como em tantos contos que ouvimos desde crianças, esta minha viagem também começará com o “Era uma vez…”.

“Era uma vez uma mulher de seu nome Madalena, que desde cedo influenciada pela sua avó materna de quem herdara o nome, decidiu tomar as rédeas do seu destino e deixar que esse a levasse até onde então, só a sua imaginação conseguia alcançar. Apesar de todas as contrariedades que encontrou, promessas, invejas, arranjou a força que lhe faltava e corajosamente superou todos os obstáculos.”

Viajei para Dublin e na minha imaginação estive em Yggdrasil, conheci os MacCumhaill e com a sua permissão escrevi a sua história.  

Aprendi a confiar na magia, pois esta apresenta-se nas formas mais simples que nos rodeiam.

Regressei a Lisboa lembrando-me saudosamente dos meus tempos de aluna num Colégio Católico. Das amigas que se tornaram irmãs. Mas, acima de tudo recordei o maior ensinamento de todos, que: “A verdadeira Irmandade não une pelo sangue, mas pelo amor e respeito mútuo”.

E, assim, aos poucos, fui escrevendo sobre pessoas, locais, situações. Nunca mais parei de o fazer, porque para mim parar nunca será uma opção.

Esta história nunca terá “Fim”, porque nunca acabará e a imortalidade de que tanto gosto de falar, acabará por se tornar realidade em tudo o que escrevo.

Desejo, que leiam muito. Que sintam, folheiem, cheirem. Porque cada livro tem algo diferente para nos contar, tem a alma do seu escritor impresso em cada página e os meus têm a minha.

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

UM PEDIDO DE NATAL, de Anita Dos Santos















Subiu a escada estreita do prédio, os dois lances que levavam até à sua porta e à porta em frente da sua no patamar iluminado com luz fraca.

Desalentado, olhou para as mãos vazias, parando dois degraus antes, sem coragem para bater à porta.

Era um homem ainda novo, mas cujo rosto apresentava sinais de envelhecimento precoce e olhos cheios de desgosto.

Com uma figura alta e bem-apessoada, tinha tentado, uma vez mais, compor o único fato apresentável que tinha para ir candidatar-se a uma vaga de emprego.

“Lamentamos, a vaga já está preenchida. Mas ficamos com o curriculum em base de dados, caso surja algo.”

A resposta usual, com uma ou outra variante.

Com um suspiro subiu os restantes degraus e bateu na porta em frente à sua.

Lá dentro ouvia-se uma televisão a transmitir desenhos animados com grande estrépito.

A porta foi aberta, só uma nesga, de modo a deixar espreitar quem estava por dentro.

- Sou eu Dona Margarida, o Jorge.

- Todo o cuidado é pouco, sabe-se lá quem é que nos vem bater à porta depois de ser noite.

- Tem razão, o cuidado não faz mal nenhum. E o meu “terrorista”, portou-se bem?

- Ora adeus, aquilo é um anjinho. Não dá trabalho nenhum. Está na sala a ver os bonecos. E então, como é que correu desta vez?

- Já estavam servidos, infelizmente.

- Para a próxima será, de certeza!

- Pois, para a próxima…

- Vou chamá-lo, já tinha perguntado por ti, e se o Pai Natal este ano lhe traria algum presente.

Foi para dentro com um sorriso, deixando-o a olhar para as mãos vazias.

Esperou um pouco enquanto ouvia a conversa baixa dentro de casa. Depressa chegaram até ele os passos curtos e apressados do filho.

- Pai! Vi os desenhos animados na televisão da Dona Margarida e bebi um copo de leite, e portei-me muito bem!

- Olá campeão! Que tal irmos até casa? Obrigado por tudo Dona Margarida. Feliz Natal!

- Sempre que necessitares estás à vontade para o deixar ficar comigo. E pensa a sério no que te disse. Para a próxima acertas com toda a certeza. Tens de ter fé em ti e nos teus sonhos!

Olhou um pouco espantado para os olhos brilhantes que o fitavam, agradeceu uma vez mais, e saiu com o filho.

A casa pouco tinha.

Depois de a esposa ter falecido, se não tivesse o filho pequeno para cuidar podia ter enveredado por caminhos menos bons.

Em seguida tinha vindo o desemprego. Reestruturação de empresa, extinção de posto de trabalho…

Era Natal e não tinha nem um presente para dar ao filho…

Quando foi dar-lhe as boas-noites, encontrou-o sentado na cama acompanhado pelos bonecos favoritos.

- Então, hoje não se dorme?

- Sabes, a Dona Margarida hoje contou-me a história do Menino Jesus.

- Contou?

- Sim. Ela contou-me que ele consegue fazer o que mais ninguém consegue. E se tu lhe pedisses para te arranjar um emprego? Ela diz que temos de acreditar, e eu acredito em ti, pai.

Ficou sem saber o que responder ao seu filho de cinco anos.

- Está bem Miguel, vou pensar no que me disseste. Agora dorme bem. Até amanhã.

Foi para a sala sentar-se no sofá a pensar na conversa que tinha tido com o filho, em frente da televisão desligada. Como é que podia explicar que simplesmente não havia empregos. Ponto.

Deitou-se ao comprido e fechou os olhos, cansado.

Estava a caminhar por entre árvores antigas, de troncos largos e cobertos de musgo fragrante. Para onde quer que olhasse tudo era verde e florido. O ar era leve e a luz brincava por entre as ramadas mais altas das árvores. Ao longe ouviam-se risos de crianças, como quando estão numa brincadeira plena de diversão.

Viu-se em frente de uma dessas crianças, que o olhava com atenção e ar sério.

- Então Jorge, como é possível que carregues nos ombros um peso tão grande?

- Desculpa, quem és? Está sozinho? Estás perdido?

- Não Jorge, quem está perdido aqui, és tu. Não encontras o teu caminho porque perdeste a tua luz. Deixaste de sonhar, deixaste de acreditar em ti… O que é feito daquele homem que não se deixava abater por nada, que lutava sempre mesmo quando tudo parecia estar perdido?

- Quem és tu?

- Sou quem tu necessitavas encontrar. Sou os teus sonhos por cumprir. Sou o sorriso do teu filho. Sou o teu anjo da guarda. Sou o espírito do Natal.

- Sou aquele que está aqui para te lembrar que não desistas nunca dos teus sonhos, que lutes por eles, pois assim um dia vais alcançá-los. E agora são horas de acordares!

Sentou-se de repelão com o telefone a tocar.

Olhou para o relógio. Dormiu a noite no sofá… Não admira ter tido uns sonhos tão estranhos!

Chegou a tempo ao telefone, antes de desligarem:

- Estou a falar com o Senhor Jorge Almeida?

- Precisamente.

- Peço desculpa por estar a telefonar tão cedo e na véspera de Natal, mas queria assegurar-me de que conseguia apanhá-lo.

- Desculpe, mas quem fala?

- O senhor ontem veio à nossa empresa responder a um anúncio para uma vaga, mas já estava preenchida.

- Fui sim. Já não cheguei a tempo.

- Pelo contrário! O seu curriculum é precisamente o que andávamos à procura para outro lugar, que não está anunciado, de mais responsabilidade. Ficámos muito bem impressionados com as recomendações que apresentou. Posso dizer-lhe que estamos francamente interessados.

- Isto é alguma brincadeira?

- Asseguro-lhe que não. Estou a falar muito a sério. Não me diga que já arranjou outra coisa e já não está interessado?

- Estou interessado! Estou muito interessado! Claro que sim!

- Ora ainda bem! Pode passar por aqui ainda no fim da manhã?

Desligou o telefone após ter combinado a reunião, atordoado.

Na porta da sala o filho, com o urso de baixo do braço olhava para ele com um pequeno sorriso nos lábios.

- Eu já sabia! Sabes, eu pedi ao Menino Jesus porque sabia que te esquecias. A Dona Margarida diz que os desejos de Natal são sempre atendidos, em especial os dos meninos pequenos.


- Ela é uma senhora muito sábia, e afinal pode ser que o Pai Natal passe por cá também!