Federico
Varese é professor de Criminologia na Universidade de Oxford
e o premiado autor dos livros Mafia in movimento
e The Russian Mafia.
Escreve para o suplemento
Literário do Times e para o jornal La Stampa.
Alguns dos seus textos já
foram publicados no The New York Times,
The London Review of Books, Dissident Magazine e em várias revistas
científicas.
Pode consultar a página
do autor em federicovarese.com
Tive a possibilidade de
falar com o autor no passado dia 13 de Maio, no Hotel Flórida, em Lisboa, onde consegui
conhecer um pouco mais o homem por detrás do livro Mafia Life, inicialmente publicado em 2017, e felizmente publicado este
ano, em Portugal, pela Edições Saída de Emergência.
“A
vida é difícil.
E,
no fim, morremos”
Federico
Varese
MBC
– Estou
a lembrar-me concretamente dos filmes “O Padrinho” onde vivemos dentro de uma
família mafiosa, e o “Chacal”, um mercenário. Na sua opinião existem limites
entre a psicologia da verdadeira Máfia e o que Hollywood nos mostra nos filmes?
FV
- O meu livro tem um capítulo sobre cinema que fala sobre “O Padrinho”, e
explica como o filme não é uma descrição precisa da Máfia. Por exemplo, na
história da Máfia americana, o filho não sucede ao pai. E é importante saber
que estas famílias tiveram o seu início com a venda de estupefacientes. O que
Hollywood nos vende é pura ficção.
Nas minhas entrevistas
com alguns dos seus membros foi com admiração que fiquei a saber que adoram o
filme “O Padrinho”, e que com o tempo começaram a representar algumas atitudes do
que viam no grande écran. É como se imitassem a arte mais do que a arte
supostamente os imitasse a eles.
Então, sim, acho que nos
filmes existe muita ficção, tal como acho bastante curioso o interesse dos mafiosos
por algo que os deveria descrever e que não se aproxima minimamente da sua
realidade.
A psicologia da Máfia, a
meu ver, surge quando passam pelo ritual de iniciação, como se naquele momento sofressem
uma transformação da sua própria personalidade. Não se sentem como empregados de
um negócio, é algo a nível pessoal que se altera. Em algumas famílias mafiosas chegam
mesmo a mudar de nome, como se renascessem, a sua iniciação é o momento em que
se sentem verdadeiramente especiais. Existe um elevado grau de psicologia nesta
união, afinal é uma escolha que fazem pela vida que querem levar a partir daquele
dia, tornando-os parte de algo maior, de uma irmandade.
MBC
–
Na sua opinião qual é a verdadeira face da Mafia? Simples criminosos? Um clube
de homens gordos em saunas a beber rodeados de prostitutas? Existe um Capo di Capo?
FV -
Não acho que haja um chefe do chefe. A meu ver as máfias são muito
descentralizadas, cada grupo mafioso, cada família mafiosa, é independente e evidentemente
todas elas têm um só chefe.
No entanto não é estranho
os chefes das diferentes famílias reunirem-se com uma certa regularidade numa
espécie de comissão. Nisso todas as máfias funcionam da mesma maneira. Têm reuniões
muito semelhante e o que é realmente extraordinário é que são organizações muito
flexíveis. Não são organizações monolíticas, únicas, o que lhes permite maior diversidade
e liberdade dentro de cada grupo.
Para mim, a verdadeira
face da Máfia é fazerem o que é necessário para controlarem um território
porque no final o que pretendem atingir é o estatuto de detentores de um pseudo-estado,
desejam estar no comando de um bairro, de uma cidade, de um negócio mesmo que este
esteja longe do seu alcance.
Em última análise, para
mim, a máfia quer ter a mesma imagem de um Estado, um Estado do mal, é claro. Contra
o qual tentamos lutar se pudermos.
MBC
–
No seu entender existe alguma explicação que explique o motivo pelo qual os Vori-V-Zakone vêem quase todos da
Geórgia?
FV
- É verdade que existem muitos georgianos nos Vori, especialmente após a desintegração da União Soviética. Desde
essa altura que a Geórgia tem sido um terreno fértil para a proliferação das
mafias de leste. Existem dois grupos principais os Tbilisi e os Kutais. Estes
dois gangues lutam principalmente entre si, mas estão muito presentes por toda a
Europa, principalmente na Grécia, Itália, Portugal e Espanha.
Penso que a razão da
representação excessiva de caucasianos nos Vori,
onde existem também muitos russos, azerbaijanos entre tantos outros de várias
nacionalidades espalhados por todos os cantos do globo, se deve ao facto da Geórgia
ser um terreno prolifero para o seu crescimento, e isso deve-se em parte à história
do próprio país.
A Geórgia, sempre foi, e
continua a ser uma região muito rica da antiga União Soviética, onde sempre existiu
muita economia paralela no mercado ilegal, sendo este um dos principais motivos
que ajudaram a criar as oportunidades necessária para o aumento da criminalidade
na antiga União Soviética, presentemente na Geórgia, e em toda a Rússia.
Penso que essa é a
justificação para existir uma maior concentração deles concretamente neste país.
Não nos podemos, contudo, esquecer da repressão maciça da máfia georgiana sob o
mandato do presidente Saakaschvili, quando muitos deles fugiram para a Grécia, Itália,
Espanha e alguns chegaram mesmo a estabelecerem-se em Portugal. É por esse
motivo que os vemos espalhados um pouco por todos os lados.
A verdade é que alguns
conseguiram chegar aos Estados Unidos. Temos o exemplo de Ivankov um famoso criminoso
que viveu durante um longo período de tempo em Brighton Beach, na cidade de
Nova York.
MBC –
É um facto que os encontros são de conhecimento geral e que nunca ninguém é
preso. Ainda recentemente em Moscovo houve uma reunião dos chefes com o
conhecimento de todos e nada foi feito. Como o justifica?
FV –
Como sabe, na Rússia é habitual os diversos chefes encontrarem-se com uma certa
regularidade. Por vezes num barco, num restaurante, e nunca são menos de
cinquenta a sessenta pessoas.
Imediatamente após a ocupação
da Crimeia pela Rússia, aparentemente houve uma primeira reunião, mas consta
que ainda recentemente se voltaram a encontrar lá.
A polícia obviamente não
quer prendê-los e são facilmente subornáveis. Eu descrevo neste livro como um
desses chefes vai para Moscovo e os seus amigos subornam a polícia para que ignorem
a sua presença. Infelizmente esse é o caso.
MBC
- Como explica que sendo feita tanta investigação à volta destas sociedades, que
os passados dos seus membros sejam do conhecimento geral, e sabendo que na
maioria dos casos estamos a falar de perigosos criminosos. Que continuem em
liberdade, e com delegações espalhadas por todo o mundo?
FV
- Depende um pouco do local. Em Itália por exemplo alguns estão presos. Na Sicília
a máfia está maioritariamente na prisão e refiro-me principalmente aos chefes. Em
outros países já não é esse o caso, temos o exemplo do Japão, da Geórgia e da
Rússia. Na minha opinião depende do país.
A verdade é que
independentemente de alguns líderes estarem presos enquanto outros continuam em
liberdade, a máfia continuará a existir. Não desaparece após a prisão dos seus chefes
porque a meu ver as razões pelas quais a máfia existe não são seriamente abordadas.
A repressão, a prisão podem ser os primeiros passos, mas as sociedades não se
podem esquecer que é necessário lidar com as razões culturais e económicas que
permitem a sua existência.
MBC
- Se Al Capone nos anos 30, foi preso por fraude do IRS, considera que os
modernos mafiosos têm melhores capacidades de lavagem de dinheiro nos meandros
em que se mexem? Será esse um dos motivos pelos quais não os conseguem apanhar,
ou, são os modernos investigadores que têm menor capacidade para o fazerem?
FV –
Na realidade é cada vez mais difícil prendê-los porque escondem o seu dinheiro
nos mais diversos paraísos fiscais e não só, se existem pessoas corruptas, é evidente.
MBC
- Existe uma justificação lógica para a Máfia estar sempre rodeada de sangue e
cadáveres?
FV –
Nem todos utilizam esses métodos, os Yakuza
por exemplo continuam a utilizar a espada. Existem penalidades muito
pesadas para o uso de armas de fogo no Japão, e a verdade é que são todos bastante
ágeis no manuseamento das espadas, mas a verdade é que a taxa de assassinatos
no Japão é muito baixa na medida em que eles evitam ao máximo matar preferindo
punições, tais como o corte dos dedos. A verdade é que eu não queria estar no seu
caminho.
Em Itália ainda são muito
fortes, especialmente os Andante.
A região meridional de Calábria
tem uma máfia muito poderosa chamada Ndrangheta, que são responsáveis pelo controlo do tráfico de drogas.
A máfia siciliana ainda
existe, mas está neste momento sob grande pressão.
Temos a Máfia de Nápoles
que é muito violenta. Matam muito mais que os Ndrangheta e a máfia siciliana, não conseguem
controlar muito bem a violência.
Sim, a máfia italiana
ainda está no comando em Itália. Qualquer grupo criminoso estrangeiro que se
queira instalar, incluindo georgianos, têm que pedir autorização aos italianos
para operarem.
MBC
- O que os motiva além das iniciações com as suas diferentes regras?
FV –
As ligações com a religião são muito fortes para todas as máfias que descrevo
no livro, os rituais de iniciação são muito importantes para elas, o ritual é um
processo quase religioso, de certa forma vêem-se como deuses.
No caso dos russos,
quando são iniciados mudam o nome que é o que acontece na igreja ortodoxa russa
quando se tornam padres.
Em Itália tal como na Sicília
estão muito ligados à igreja católica.
Então a religião é o
elemento crucial do modo de pensar de todas as máfias.
Penso que mesmo agora, todos
acreditam na força da sua união, da irmandade. Quando são iniciados e passam pelo
ritual, tal como no passado sentem algo especial, passam a fazer parte de algo
maior, mas tal como no passado, o seu principal objectivo é terem dinheiro.
Eu tive o cuidado de contar
em algumas das histórias que constam do meu livro, o que a meu ver me pareceu realmente
extraordinário na integração de novos membros em algumas destas sociedades. A
verdade é que todos matariam apenas para ser aceites, fazerem as tatuagens e
conseguirem títulos o que acaba por ser caricato porque não estão a matar pelo dinheiro,
mas para serem aceites.
Acima de tudo acreditam na
missão que é a ideologia da máfia.
Apesar de não termos
dúvidas de que são criminosos e que o seu objectivo final é ganhar dinheiro com
as suas actividades.
MBC -
Sabendo como Litvinenko, e no ano
passado Skripal foram envenenados, antigos agentes russos ambos desactivados há
mais de quinze anos. Mas tendo ambos começado a cooperar com as autoridades, no
caso de Litvinienko a colaboração com as autoridades espanholas ajudou na
captura
de vários membros da máfia de leste a actuar em Espanha. Não receia
escrever sobre casos reais que possam de alguma maneira dar pistas à polícia
colocando-os no encalço das pessoas que entrevistou e que não querem ser
apanhadas?
FV -
Eu tento estar seguro, cruzo os dedos para que tudo corra sempre pelo melhor.
Bem, eu tento sobreviver, espero sobreviver. Mas gostava de reafirmar que não
sou polícia, nem tão pouco os quero prender, na realidade só pretendo…entendê-los.
Não consegui falar com
muitos porque levo muito tempo a desenvolver o relacionamento. Mas tive a
possibilidade de conhecer um chefe da máfia Russa há algum tempo, que descrevo
no livro e que acabou por ser assassinado.
Também conheci alguns em
Hong Kong.
Fui a todos os lugares
que descrevo no meu livro. Fui a Macau, ao Dubai, à Rússia, a Itália, e acabei por
ficar na Colombia durante algum tempo.
Gosto de ir aos lugares e
conhecer as pessoas, acho que é absolutamente fundamental.
MBC
– Como
consegue garantir e arranjar a sua própria segurança, quando mesmo dando nomes
falsos a sequência de eventos que descreve nos seus livros podem dar pistas e
expor alguns factos que a polícia possa utilizar e seguir?
FV -
Parte do meu trabalho consiste em visitar os lugares e tentar conhecer o melhor
que posso as pessoas, mas também uso muitos documentos de polícia e documentos
de acusação.
Se tenho medo? Bem, eu
tento ter cuidado, mas vou sempre sozinho.
MBC
–
Como consegue a Máfia estar dentro dos governos com armas estratégicas e
nucleares? Isso não nos devia assustar?
FV
- Sim, é preocupante, especialmente porque acho que as máfias estão ligadas à
política. Com isso quero dizer que essa é uma das suas essências, e também
porque demonstra que cada vez menos não falamos de criminosos comuns. Estamos a
falar de criminosos ligados ao Estado, quando eles próprios querem ser um Estado
à sua maneira. Essa é uma das facetas que os tornam mais interessantes como
material de estudo.
MBC –
Teremos um novo livro para breve?
FV -
Eu quero escrever outro livro, mas a ideia ainda está em andamento. Ainda não
decidi sobre o que escrever a seguir. O facto de ser professor universitário
tira-me muito tempo e além disso ainda publico diversos artigos em alguns
jornais. Mas vou começar a pensar nisso.
Mafia Life” é um livro
simplesmente arrebatador, a forma como o autor Federico Varese nos transporta
através dos meandros das mais dispares famílias mafiosas espalhadas por todo o
mundo. A influência da sua própria cultura, das suas complexidades, regras, mas
principalmente do único elo que realmente as une, a sua crença. A separação dos
capítulos pelos temas que nos despertam maior curiosidade, as diversas culturas
e sua influência nas próprias regras de cada fraternidade mafiosa. As regras,
as punições, as iniciações, a religiosidade de todos eles, mas principalmente a
forma leve como o autor nos transporta pela dureza deste mundo é
extraordinário. Os diversos documentos oficiais que teve que consultar, as
viagens que teve que fazer, as entrevistas com aqueles que confiaram nele para
permitir uma aproximação. Recomendo vivamente por ser simplesmente fantástico.
Texto: MBarreto Condado
Foto: Mário Ramires