Pelo preço de
dois jantares, com sorte, persistência, paciência e pontaria, voámos entre
Portugal e a Bulgária.
Chegámos a Sofia
ao final da tarde depois de um dia de escalas lowcost pelos aeroportos
da Europa envelhecida, snobe e paranóica com os próprios medos, como o são
normalmente as velhas ricas e solitárias.
Sofia lá estava, cidade com nome de mulher e deusa, suja e vagamente decadente definitivamente bela e surpreendentemente culta. A Europa do Leste no seu melhor e pior. Onde os homens de negócios se confundem com mafiosos e os mafiosos se confundem com professores universitários. Historiadores chauvinistas, religiosos ortodoxos, nacionalistas saudosistas do socialismo e mulheres jovens prostituídas. Muitas. Em cada esquina uma sex shop nas outras três esquinas casinos.
O melhor e o pior da pesada herança do universo socialista persiste vestindo Sofia num fato da marca branca que assenta desconfortável a uma Bulgária saudosa do nazismo. Património edificado monumental, parques e espaços verdes espalhados pela cidade convivem com avenidas esburacadas, caixotes do lixo devassados no chão e estacionamento selvagem.
Muita
gente jovem na rua. Teatro, ballet. Nas livrarias tudo em búlgaro. Nos cinemas
a imbecilidade gringa.
O
pequeno comércio florescente, em cada vão de escada há uma mercearia. Alguns
mendigos, menos que em Lisboa.
Sofia
é uma cidade suja com bancas de livros em segunda mão por toda a parte. Comida
barata e lindas mulheres brancas com lindas pernas brancas dentro das mini
saias curtas, olhares e sorrisos gelados e brancos nos rostos maquilhados.
Mal
chegámos, desistimos do hostel que tínhamos reservado. Pareceu-nos bem na net,
mas no local revelou-se um buraco sem aquecimento e sem casa de banho no
quarto. Claro que dissemos ao gajo que não queríamos.
Procurámos
outro e encontrámos uma pensão barata que transformou o dormitório em quarto
duplo. Deixámos lá as mochilas enquanto os donos foram arranjar uma cama de
casal.
Saímos
para a rua prestes a anoitecer.
Demos
um passeio de quilómetros atravessando a cidade que fervilhava no trânsito.
Fomos à estação de comboio comprar os bilhetes para Istambul.
Parques
e jardins omnipresentes, mas descuidados. Grande a profusão de obras de arte a
três dimensões. Escultura e arquitetura, desde a baixa idade média até aos dias
de hoje, convivem no permanente verde de Sofia. Particular incidência para o
realismo soviético. Algumas obras modernas e neorrealistas também aparecem.
Mais ou menos escondido entre as traseiras de uma igreja e no final de uma feira de pinturas e antiguidades onde não resistimos a gastar alguns levs, encontrámos um restaurante simples. Comemos principescamente e fomos iniciados no sagrado e oculto mistério dos tintos da Bulgária. E por aqui nos ficámos, jurámos nada revelar e as memórias são nebulosas.
Voltamos
a pé para o hotel caminhando na noite gelada e dura de Sofia.
No
dia seguinte, levámos as mochilas para a estação e deambulámos pelos jardins e
catedrais. Fomos ver o monumental parque escultórico de homenagem à vitoria
contra o nazismo de 1945… que os nazis de hoje querem literalmente derrubar.
Comemos
e andámos pela cidade.
Como
não há bar no comboio regional que segue a linha do Expresso do Oriente, preparámos
um piquenique para a viagem não nos apanhar com fome.
Levámos
o que fomos comprando nas mercearias da zona da estação central: uma espécie de
bola de carne com salsicha, folhado de queijo feta, pão de centeio, mortadela,
chá preto a ferver para dentro do termo, dois litros de água, meio litro de
vodka e uma garrafa de conhaque para as eventualidades.
O
comboio chegou pontual com o previsto atraso de meia hora. Saímos pelas nove da
noite. Despedimo-nos de Sofia com um beijo nos lábios e seguimos para oriente.
Cigarros
fumados furtivamente à janela com a conivência do revisor num comboio para
"não fumadores". Apesar de tecnicamente, este comboio já não ser o
Expresso do Oriente, de não ter nada de expresso, a linha é a mesma e a magia
permanece. Atravessa as Balcãs de Zagreb a Istambul.
De
Sofia a Istambul, são os quinhentos quilómetros do percurso da separação dos
continentes.
Por fora degradado, por dentro funcional e confortável, um comboio grande e lento. O aquecimento no máximo, que nos impôs viajar de cuecas enquanto a neve caía na noite gelada. Saímos de Sofia ao final da tarde cinzenta e fria. Foram dezasseis horas no cubículo da carruagem cama, depois Istambul. Luminosa, temperada e a cheirar a mar.
Pelo
meio, uma paragem no meio do nada para pagar um vago visto, comprar cigarros ao
preço da chuva e carimbar o passaporte. Isto entre as três e as quatro da manhã
com militares armados a bater no cubículo. Os pés descalços dentro das botas
grossas, as calças vestidas à pressa e um casaco grande de neve por cima do
tronco nu, um gorro na cabeça, o passaporte na mão e a carteira presa nas
calças entre o umbigo, o cinto e a braguilha.
Chegámos
duas horas depois do sol nascer.
Istambul
lá estava, esparramando as carnes fartas sobre as águas. A maior cidade da
Europa, uma ilha de culturas misturadas, num mundo cada vez mais fechado sobre
si próprio.
Três
margens e nenhum rio. Apenas mares. Quatro mares, dois mares a ligarem outros
dois mares. Marmara e Bósforo a ligarem o Mediterrâneo e o Negro. Mais um Corno
de Ouro. Três impérios sobrepostos. Romano do Oriente, Bizantino e Otomano.
Nacionalismo
exacerbado. Internacionalismo censurado. Curdos e iraquianos esperam a sua vez.
O fundamentalismo alastra nos imensos subúrbios onde os pobres vêem passar em Mercedes de vidros fumados, um mundo que nunca será seu.
O fantasma do Euro vai fazendo vítimas enquanto do Bósforo, vinte e quatro
horas por dia mais de mil pescadores pescam peixinhos.
Saídos
da estação, despimos casacões e fomos ver o mar junto à ponte de Galata.
Do
outro lado, o Bairro de Galatazarai. Fica na margem Norte do Corno de Ouro. Na
parte europeia de Istambul. Casas antigas, ruas estreitas e praças com sol.
Procurámos um local para deixar as malas e à noite dormir. Ficámos por Sultanahmed
com as suas quinhentas mil pensões baratas, hostéis e hotéis à sombra da Haya
Sofia. Ficámos num primeiro andar de tetos baixos, num quarto minúsculo, mas
limpo, barato e com uma casinha de banho de brincar. Na rua os, cafés onde se
está a beber chá, a fumar chicha, a jogar gamão e a discutir política em todas
as línguas desde há três mil anos até este preciso momento.
É assim Istambul, desde o mais remoto início dos tempos e será assim até à
eternidade.
Mesmo debaixo da Ponte de Galata, que junta as duas margens do Bósforo, ali
mesmo, junto às águas vende-se peixe.
Peixinho
bom. Fresco. Peixe humilde para gente humilde: carapaus, cavalas, fanecas e tainhas.
São bancas de venda ambulante e cada uma está equipada com um fogareiro que
permite assar logo ali o peixe que se comprou. Ao lado, outros vendedores em
carrinhos vendem sandes de peixe assado que escolhemos na banca do vizinho. Há
também quem vendas as bebidas. Iogurte, café e chá.
Estão
por ali umas mesas encostadas onde se pode abancar e comer em cima das toalhas
de plástico limpas diligentemente com um pano húmido e gotas de limão.
Refeições baratas, para gente do bairro, empregados de comércio, trabalhadores
das obras, estudantes e ocasionais viajantes. Comemos e seguimos viagem.
A
incontornável Haya Sofia. Mesquita da Sagrada Sabedoria onde os gatos são os
donos da cidade. Ficámos por ali até ao sol se por. Comemos, bebemos chá e fumámos
nas esplanadas.
No
dia seguinte o mercado. O Grand Bazar, que não serve só para comprar e vender, mas
também para falar com os amigos, dizer mal da vida dos outros, namorar e ver
quem passa. No mercado das especiarias, abastecemos a despensa de todos os
temperos.
Comemos
por ali, espetadas de galinha e de carneiro, com chá de maçã e frutos
secos.
A
tarde caiu rápida trazendo um vento frio que convidava à partida. Despedimo-nos
do Bósforo e voámos de regresso para Lisboa numa companhia regular que faz
preços de saldos.
Istambul
continuará a ser uma das minhas cidades, Sofia é
uma cidade que é de todos.
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