Cruzámos os ares esmagados em
cadeiras de baixo custo. Aterrámos à noite, mais uma vez carregados de nada e
com vontade de pisar o chão sujo de milénios de passos dados.
De novo em Paris, a cidade onde se
volta sempre. Os que pariram esta interculturalidade de faz de conta estão
prestes a ser devorados pela sua própria cria. A terra onde se inventou o
Ocidente prestes a afogar-se na herança do seu próprio colonialismo. Ricos e
pobres sobrevivem no medo uns dos outros. Coletes amarelos, jilabas, nudez e
alta costura.
À chegada, soldados e polícias de
todas as cores armados até aos dentes. Prontinhos a morrer pela França que lhes
dá um bilhete de identidade e lhes promete as onze mil virgens ou o paraíso ser
protagonista no telejornal.
No aeroporto uma maratona de
passadeiras rolantes paradas e vazias que foi preciso palmilhar. Com pressa,
sorte e engenho, apanhámos o último comboio para a cidade. Gare du Nord. Seriam
umas onze e meia da noite.
Saídos da carruagem sombria e da
estação imensa e suja, fomos a pé pela cidade em ebulição. Chegámos nessa hora
mágica em que as prostitutas mudam de turno, os chulos brindam com os amigos e
os bêbados ainda se conseguem mexer. Ladrões, bandidos, saltimbancos, intrujas,
vigaristas e artistas de toda a espécie a tentarem safar-se no momento para
pagar mais umas horas de renda na Cidades das Luzes.
Longe, bem longe da Paris de
franceses que trabalham nos serviços. Longe daquela Paris que existe,
hermeticamente fechada e limpa em prédios de apartamentos com porteiras.
Seguimos de mochila às costas pela
cidade. Sempre a pé, desviados dos postais turísticos e do chique. Directos
para a Paris real, a terra onde vivem dois milhões de pobres que não são franceses,
mas que nunca conheceram outro país que não a França. Putos magrebinos a
matarem-se uns aos outros em disputas por pontos de venda de haxe. Outros a
vegetar nas escadas dos prédios à espera que aconteça alguma coisa. Quem lhes
der um Corão salva-os do mundo.
Entre bebedeiras, pedradas de
heroína, propostas comerciais, abordagens religiosas, tentativas de
extorsão e ameaças veladas, lá encontrámos o sítio para onde íamos sem grandes
dificuldades.
Cinco andares para subir sem elevador
e sem casa de banho nos quartos. Tecnicamente ficámos num "hostel".
Um antigo bordel, mais ou menos reciclado, mas que alia a santíssima Trindade
de um alojamento: limpo, barato e central.
Os proprietários são argelinos da
Cabília, boa gente.
Deixamos as mochilas e saímos para a
rua. Seriam duas da manhã de sexta-feira. Bares cheios e senhoras a trabalhar
pelas esquinas. Entrámos na primeira porta aberta e pedimos dois copos de
tinto. Dissemos que não ao dealer oficial da rua, senegalês gigante, que nos
veio propor coca. O empregado percebeu e reconheceu a desenrascada e latina forma
de dizer que não, com firmeza, sem medos, mas sem arrogâncias nem
superioridades. Chegou-se e sentou-se connosco, era argentino, de Buenos Aires
e do bairro do Boca. Simpatia legítima. Bebemos juntos. Apareceu uma garrafa de
vinho que a casa ofereceu. Continuamos a falar, saudosos da sua América, a
Nossa América, a latina. Trocámos números de telefone.
Subimos para o nosso ninho no quinto
andar. Com o aquecimento ligado e a janela de vidros triplos, dentro do quarto
estava uma noite de verão. Adormecemos como anjinhos aconchegados nos quarenta
graus e no borgonha, cinco pisos acima da rua onde as poças no chão gelavam.
Acordámos pelas nove, tomámos o banho
possível e descemos. Café e chá no café do marroquino mesmo ao lado do hostel.
Andámos com o sol ainda a brilhar baixo e uma temperatura próxima do zero.
Fomos à feira da Ladra que aqui se chama das pulgas. O mundo inteiro à venda em
tendas, lojas, bancas e panos no chão.... Namorei um jogo de xadrez em pedra,
mas deixei ficar. Sem fazer compras, paramos numa roulotte, comemos omelete de
cogumelos verdadeiros e bebemos cerveja artesanal.
Depois rumámos à colina de
Montmartre. Caminhámos calados e solenes entre os espectros dos camaradas
massacrados quando nos esmagaram a Comuna. Subimos ao Sacré Coeur e misturámos
com os outros que eram turistas. Música de rua e indianos a vender tubos
telescópicos de alumínio para tirar fotografias. Sentámo-nos ao sol no jardim a
fumar e a fazer a fotossíntese. Rimos, namoramos e tiramos fotografias a nós
mesmos com os telefones.
A fome fez-nos procurar onde comer.
Encontramos um café mais ou menos decadente, pedimos pão, queijo e uma garrafa
de Bordéus. Sobe-nos bem o tinto, o queijo não era mau, o pão era péssimo.
Nas placas com os nomes das ruas
recordámos livros e filmes antigos. Entrámos em várias lojas de discos, sexshops
e livrarias. Não comprámos nada, tudo demasiado caro, demasiado datado,
demasiado enfadonho, demasiado monótono ou demasiado plastificado. Com a
memória da geração perdida, fomos ao Pigale beber um ricard. A Avenida Clichy,
espreguiçava-se ao sol de inverno, tudo menos tranquila.
Atracamos numa esplanada, pedimos uma
cerveja e café. O mundo passou todo à nossa frente. Excursões de chineses,
casais americanos, executivos alemães e rameiras, chulos e mendigos de todas as
nacionalidades e cores.
Com o cair da noite, as ruas foram-se
enchendo. Numa travessa escondida e escura, na zona mais decrepita do Pigale, o
destino e algumas referências prévias, levaram-nos a uma tasca que vende vinho
de excelente qualidade e que tem pasta de fígado de ganso. Caseira. Feita com
fígado mesmo de ganso, sem iscas de porco misturadas. Estava frio na rua e
os ossos doíam só de olhar lá para fora. Pedimos uma garrafa para aquecer,
comemos pasta de fígado, presunto, pão e queijo. Tudo bom. Veio mais vinho que
bebemos. Fomos ficando na conversa mole sobre vinho e comida com a dona da
taberna.
Voltámos ao hostel já tarde e
vagamente tocados.
Com o calor do aquecimento sempre
ligado, dormi pesado e acordei cedo com boca seca. Era domingo de manhã, na
esquina comprei o Libe e fui à padaria buscar duas sandes para levar. Trouxe
também uma baguete de sésamo deste tamanho que comi com o chá da manhã no café
do marroquino.
Apanhamos o metro até ao arco do
Triunfo. Depois, descemos os Champs Elysêes até à Place de la Concorde.
Cruzámos o Sena. Finalmente a tal Paris, dos canais de televisão especialistas
em viagens. A Paris dos cafés para americanos. Paris das excursões turísticas,
das luas de mel e dos casais de meia idade do Japão, Coreia e China a fazer
fotos para emoldurar.
Caminhámos pelo Quais D'Orsay até à
inevitável Torre do Eiffel. Mais policias e militares de camuflado e uzi.
Temperatura entre os zero e os quatro graus. Subimos as escadas de ferro
evitando a fila e o pagamento. Lá em cima olhamos à volta, tiramos fotografias,
fizemos juras de amor, especulamos sobre distâncias e queixamo-nos do vento
gelado. Descemos e comemos as nossas sandes no jardim ao lado da ponte. O sol
de inverno fica bonito nas fotografias, mas não aquece, bebemos chá quente do
termo envolto numa meia de lã, mas mesmo assim, foi o frio quem nos sacudiu
dali.
Andamos mais de uma hora pelas ruas
até ao hostel onde no nosso quartinho do quinto piso o verão era eterno
e convidava ao descanso.
O argentino do bar acordou-nos com
uma mensagem a combinar irmos beber um copo às sete e meia. Eram sete e dez. Vestimo-nos
para uma expedição polar e caminhamos cinco minutos até ao lugar de encontro.
Aqui no 18º Bairro, há dez anos atrás
só viviam argelinos e senegaleses. Mas o passar do tempo deu poder de compra à
geração dos filhos dos que fizeram o Maio de 68... E estes franceses entre os
35 e os 50 anos, que cresceram nos valores da liberdade com padrões de consumo
burgueses, sem preconceitos de classe e sem valores religiosos ou
nacionalistas, preferem morar no Centro de Paris entre africanos e asiáticos do
que nos subúrbios, entre brancos. Chama-se a esta subclasse emergente, Bobo,
Boheme Bourgoise. É esta gente, quem alimenta economicamente o bairro e os seus
pequenos negócios de cafés, mercearias, remodelações, livrarias, traficantes de
drogas, lavandarias, oficinas de bicicletas e uma ou outra galeria de arte que
vai aparecendo.
Fomos para um café completamente
cheio de bobos, africanos, latinos, e de magrebinos. Mesas compridas e toda a
gente misturada. A esplanada virada pró canal do midi. Bebemos tinto e comemos
pão com coisas que iam aparecendo: queijos, enchidos, patês e até conservas de
peixe. Falámos de vinho, política, livros e viagens. Da Europa e da América. Da
Argentina, de Portugal e da Cabília com um argelino de segunda geração que se
juntou a nós. As garrafas navegavam ate à nossa mesa a boiar entre o fumo e a música
do Fateh Ali Khan que se sobrepunha ao barulho das vozes e dos copos a bater.
A festa acabou relativamente cedo,
porque era domingo à noite.
Saímos em clima alegre e
descontraído. Voltámos a pé pelas ruas estreitas.
A polícia tinha vedado a rua do nosso
hostel. Não podíamos passar. Disseram-nos para esperar um bocadinho. No
café do marroquino, minutos antes aconteceu um homicídio. Um adolescente foi
esfaqueado e esperava-se a ambulância da morgue.
A morte do miúdo desconhecido no
café, cortou o clima de festa em que seguíamos e foi-nos buscar ao Bordeaux
onde alegremente planávamos para nos trazer em voo picado para o mundo real.
Estava definitivamente acabado o
fim-de-semana.
Voltamos sem mágoas, mas sem vontade
de ficar muito mais. Sabemos que mais dia menos dia regressaremos.
Paris é especial. Dá-nos aquele
conforto de sabermos que aconteça o que acontecer, façamos nós os que fizermos
das nossas vidas, Paris permanecerá. Paris vai lá estar disponível como uma
prostituta madura, cansada, ligeiramente alcoólatra e com mau feitio, mas
eternamente bela e sedutora.
“Teremos sempre paris”, dizia-se em Casablanca.
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