A fotografia amarelada, de dimensões generosas, mostrava um
elegante navio a vapor com três chaminés. Na fotografia não se consegue ler o
nome pintado na proa. A legenda, escrita em itálico informa sem esclarecer:
NSDG em manobras de abastecimento na Terra-Nova.
Entrei na antiga seca do bacalhau, mais por curiosidade do que
por outra razão. Perguntei se me dava licença.
O homem velho, disse logo que não era dono da seca. Que só era
dono da casinha pequenina que estava dentro do muro da seca e que lhe deram
como indemnização há já mais de trinta anos e que não vendia, nem queria saber
de conversas de venda, nem aparthotéis nem da puta que os pariu.
Para desanuaviar, apontei para o quadro e perguntei: que navio é
este? NSDG? O que é isso?
Nossa Senhora da Guia. Bacalhoeiro. Vapor com três motores, dois
motrizes e um de manobras, quarenta e nove homens a bordo, trinta e dois doris,
vinte pescadores, onze mestres, doze ajudantes, três mecânicos, um eletricista,
um médico e um capitão.
Não sabe o que é um dori? Então não sabe nada de pesca ao bacalhau.
O dóri é o barquinho só para um homem, com que nos largavamos do navio para
pescar bacalhaus à linha...
Entrei no Nossa Senhora Da Guia como ajudante. Praticamente trabalho escravo, tá a ouvir? Trabalho escravo. Estive vinte anos na pesca do bacalhau, sempre no Nossa Senhora da Guia. Entrei um miudo e onde saí de lá mestre. Saí tão pobre como entrei, mas com mais vinte campanhas de bacalhau.
Um navio lindo... nunca teve uma avaria e nunca perdemos ninguém.
Depois, mudámos de comandante e logo na primeira viagem
naufragou. Salvámos-nos quase todos, menos o comandante que era novo e um mecânico
filhadaputa amigo do novo comandante, que não queria que se pagasse ao mestre
Coutinho.
Isto é verdade, tá a ouvir?!!!
Mais de vinte anos nos bancos de bacalhau da Terra Nova, onde nunca se fazia de noite. Às vezes, o nevoeiro era tanto que dava para comer à dentada... E nunca, nunca, nunca perdemos um dori nem o homem que lá estava dentro a pescar bacalhaus...
-- Tiveram sorte…arrisquei.
-- Sorte? Sorte é uma rameira bêbeda que se esquece de cobrar!!!
Não era sorte, nada disso, tínhamos era o Mestre Coutinho! Quando alguém se
perdia no nevoeiro, soprava na buzina três apitos e o Mestre Coutinho ia
buscar-nos a mostrar o caminho!
O Mestre Coutinho, era o Mestre do Nossa Senhora da Guia. O
comandante do navio, depois da campanha acabada, contas feitas, ia direitinho
ao senhor da pedra em Matosinhos pagar-lhe a parte dele como mestre. Deixava o
envelope com o dinheiro no primeiro degrau da capela, punha uma pedra por cima
e vinha embora... trinta épocas assim e nunca se perdeu ninguém...
A mim, aconteceu-me. Não lhe estou a dizer o que me contaram. Aconteceu comigo.
Andava a pescar bem, apanhar graúdos, ao largo, deviam ser umas sete da tarde,
que ali um homem nunca sabe que horas são que o sol nunca se põe... nisto, cai
um daqueles nevoeiros que só quem lá esteve sabe do que falo. Sentado no meio
do dori de dois mestros não via a poupa... E os bacalhaus a entrarem para
dentro do barco....
Nós eramos pagos pelo que pescassemos porque o que diziam que
era o salário que nos pagavam ia logo para a dívida que tínhamos de assinar na
companhia antes de embarcar... Tá claro que eu queria era pescar... e fui
pescando. Quando dou por mim, olho à volta, e já não se via o navio... Já tinha
o barco cheio... carregado, é nesses momentos que um homem tem receio. Não é
medo, é respeito ao mar... Comecei a ver a minha vida a andar para trás, foi
então que me lembrei do búzio do Mestre Coutinho. Soprei três vezes e
esperei...Nem um minuto passou e do lado da poupa ouviu-se a resposta: três
vezes: puuuuu puuuuu puuuu…virei o dori e remei na direção do som... remei mais
de quatro horas pelo nevoeiro... Quando tinha dúvidas apitava três vezes e o
Mestre Coutinho respondia três vezes... fui remando até quase bater na proa do
Nossa Senhora da Guia.
Foi o Mestre Coutinho que me levou de volta ao barco.
A mim, salvou-me dessa vez... a outros salvou de outras vezes.
Muitas vezes.
Nunca perdemos ninguém enquanto se pagou ao Mestre Coutinho.
Ainda sem perceber muito bem, perguntei:
-- Mas o Mestre Coutinho também era pescador?
-- Pescador? Nada disso, era Mestre. Mas não era de carne e osso...O Mestre Coutinho era o espírito que andava no Nossa Senhora da Guia!!! Espírito, mas que todos nós fazíamos questão de dividir com ele o pagamento da época... Mas depois o comandante reformou-se e veio um novo comandante que não acreditava no Mestre Coutinho. Combinou com um que era mecânico, que nunca tinha embarcado e que até diziam que era da pide, para deixarem de pagar ao Mestre Coutinho... o mecânico dizia que o pagamento do Mestre Coutinho era para o sindicado... que era coisa de comunistas... e em combinação com o comandante levantou essa questão à direção da companhia.
Quando levantámos ferro, já eles tinham decidido que não iam pagar ao Mestre Coutinho. Mas a malta do porão, que já era velha no mar, combinou que íamos dividir entre nós para pagar ao Mestre na mesma.
Foi isso que nos salvou...
O Nossa Senhora Da Guia teve a avaria ao largo do Canadá e eles começaram a mexer nas máquinas. Nós já sabíamos que não era coisa boa.... Estavamos parados há horas à deriva e caiu a maior tempestade que vi no mar. Dois dias de tormenta. Ao segundo dia, o navio começou a meter água e adornar.... O rádio sem funcionar e o motor parado... No terceiro dia começou a afundar... metemos os pescadores nos doris e resto em quatro balsas. Passadas umas horas veio a marinha do Canadá para nos recolher. Recolheram-nos a todos. Todos menos a balsa do comandante e do mecânico da pide que nunca mais apareceram.
O Nossa Senhora da Guia desapareceu engolido pelas águas.
Eu fiquei no Canadá e fiz lá a minha vida... tenho lá os filhos e os netos... Entretanto, fiquei viúvo e comecei a ouvir a buzina do Mestre Coutinho.... Então meteu-se-me isto na cabeça de ter de voltar...tinha feito já oitenta e dois. E a buzina sempre a apitar. Cada vez mais. O meu filho, levou-me ao médico e o medico de lá disse que tenho um tumor no cérebro que me faz ouvir buzinas. Dizia que não tinha mais do que seis meses de vida.
O meu filho não queria que eu voltasse..., mas como para mim
ainda não há cabo para me atracar à doca, comprei uma passagem de avião e
voltei. Vim a pensar que vinha para cá para morrer. Já cá estou há cinco anos e
ainda não morri!
Tou aqui na minha casinha a mando do Mestre Coutinho que não
quer que mandem isto abaixo para fazerem o aparthotel. Passo os dias aqui no
armazém da seca. É que enquanto aqui estiver não mandam isto abaixo nem constroem
aqui nada, que o tribunal não deixa! Foi por isso que o Mestre Coutinho me
chamou lá do Canadá.
…
Passaram dois anos sobre esta conversa. Mudaram-se cadeiras de
poderes. Um grupo de pessoas atentas à terra, como biólogos, historiadores e
pescadores, mais moradores bem-intencionados, mais a oposição local organizada,
começaram a mexer-se contra o betão.
Fizeram-se cartas e abaixo-assinados. Foram comissões em romaria
aos ministérios e gabinetes. Por fim, da comissão europeia veio o parecer:
fecharam a área às construções e à fome do betão. Chamaram à antiga seca do
bacalhau, área de “interesse histórico” e classificaram o edifício como “património
protegido”. O antigo armazém da seca do bacalhau, em princípio será um museu.
Parece que já há verba para isso.
O acaso, levou-me de novo à seca abandonada.
Perguntei pelo velhote.
Disseram-me que morreu.
Disseram-me que quando lhe vieram dar a notícia, que já não iam
demolir a seca, o encontraram sentado na cadeira, com o búzio na mão. Já não
estava bom da cabeça. Tinha um tumor que lhe afetava o juízo. Disseram-me.
Acenei que sim e finjo acreditar. Mas sei que o velho não morreu, acabada a faina e protegido pelo Mestre Coutinho, remou no seu dori de volta ao Nossa Senhora da Guia afundado nas águas escuras e geladas ao Largo da Terra Nova.
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