quinta-feira, 8 de agosto de 2019

NOCTURNO ARCO-IRIS: UM SONHO NO KUANZA, de Helder Menor















Foi tudo tudo exactamente como me tinha dito. Sem tirar nem por!

Isto é assim, vocês não sabem, não me conhecem de lado nenhum, estão aqui a ouvir-me, mas agente não nos conhecemos. Não sabem se sou pantomineiro ou digo a verdade.

Mas pela saúde dos meus netos que isto é verdade! Tenho setenta e seis anos e não conto mentiras sobre coisas sérias.

Estou só a dizer isto, porque é coisa que custa a acreditar.

Fomos os dois para a Guiné em mil nove e sessenta e sete, eu António Augusto Marradinhas que sou de Brinches e o Talochas que era da Cabeça Gorda. Fizemos a recruta juntos na Carregueira, embarcamos os dois no navio Kuanza em outubro. Saímos de Alcântara, estava um dia lindo nem parecia que estávamos no outono. Vieram as nossas famílias despedirem-se e tudo, uma coisa bonita.

Ele não era Talochas, Talochas era a alcunha que lhe demos, por ter umas mãos que faziam duas das minhas, isto sem exagero! Chamava-se Emanuel José Cabeças Chilrito, mas a malta toda, desde que fomos às sortes em Beja que lhe chamava o Talochas.

Na recruta, fizemos tudo juntos, dormíamos ele em cima e eu em baixo do beliche, isto é, quando dormíamos... Até um dia apanhamos dez dias de prisão juntos. Eu é que apanhei, ele só apanhou porque quis, por amizade a mim. Eu nunca fui indisciplinado, mas naquele dia tínhamos feito uma marcha de umas catorze horas pela serra da Carregueira, sempre a chover... subir e descer aqueles montes e valados. Chegámos eram umas nove da noite, cerrada cerrada, não se via nada...e aquele bandido daquele capitão, comandante de companhia, Capitão Borges, chamávamos-lhe o nazi... Então o Nazi, depois de estarmos todos derreados, moribundos, não nos pôs a cantar o “Angola é Nossa”?!?!? Tá claro que ninguém cantava nada de jeito. Eu só abria e fechava a boca.  O Nazi, velhaco, veio por trás de mim, nem o vi chegar, salta-me para frente e diz:

-        Então o soldado não está a cantar porquê? Não sabe cantar? Ou acha que Angola não é nossa?

Eu que estava mais morto que vivo de andar aquelas horas todas sempre a carregar o poncho ensopado, mais as botas e mais a mochila, tudo, tudo molhadinho, encharcadíssimo, só de água eram mais de vinte quilos, mais a lama agarrada ao equipamento que pesava tanto como eu que nunca fui de pesar muito... Eu, parvalhão, em vez de cantar ou de inventar uma desculpa que não tinha voz ou outra coisa assim, dei-lhe em responder.

-        Não sei cantar meu capitão que Angola não é minha, que não tenho terra nenhuma, se tivesse terra tinha ficado livre à tropa!

Ai o que eu fui dizer ao homem. Parecia um bicho a gritar para mim.

-        Dez dias de prisão! Reviralhos e comunas na minha companhia, não admito!

Nisto o Talochas, que estava arredado de mim aí uns três passos, diz logo:

-        Ó meu capitão, eu sei cantar, mas a única terra que tenho é esta aqui agarrada as botas....

Ficou tudo a rir.

Tudo menos o capitão.

            – Dez dias de prisão também para si, que isto é uma companhia de infantaria não é um circo de palhaços!!!

Apanhamos os dois dez dias. Até soube bem, dez dias de descanso, a comida era a mesma, pronto há aquele incomodo daquilo de um gajo não poder sair da cela..., mas a prisão não era pior que a camarata!!!
Bem, o certo é que fomos os dois para a Guiné.

Logo na primeira noite no Kuanza, o Talochas acordou-me.

            – Ó Brinches, ó Brinches, acorda homem!

Estava completamente branco, todo suado e com lágrimas nos olhos.

            – Olha lá Brinches tenho uma coisa muito importante para te dizer, e que quero que saibas já. Eu vou morrer na Guiné, de manhã ao nascer do dia, ao pé de uma parede branca, vou levar um tiro na cabeça, aqui mesmo no meio da testa que me saem os miolos todos aqui por trás. E quero que me faças uma coisa, quero que te cases com a Alzira que é moça trabalhadora, e séria e eu não quero que ela fique desamparada!

Eu fiquei calado a ouvir. Depois disse o que um homem tem a dizer:

            – Tás parvo, vais morrer o quê? Vamos todos morrer, mais tarde ou mais cedo. Mas se o Nazi não nos matou, não é esta guerra que nos vai matar. Tanto podes ser tu como eu... ou não morrer ninguém, ou acabar-se a guerra. Agora aqui no navio tu não sabes!!! Sabes lá como é que vais morrer....

            – A sério Brinches, já sei como vai ser, sei que é encostado a uma parede caiada de branco.  Sei que não vou sofrer nada. Sei até a hora, aos vinte para as sete da manhã.... Só não sei é a data, mas sei que vai ser aqui para onde vamos, para esta Guiné...
E eu a desfazer:

            – É pá Talochas, tás parvo, bebe mais um trago deste bagacinho que roubei ao Madeirense dorme e deixa-me dormir. Isso são os nervos. Não é medo, mas são os nervos.

Ele bebeu do bagaço do Madeirense que era do bom, e que por acaso até esteve sem me falar mais de duas semanas por causa das garrafas que lhe tirei. Bebeu um bom trago do bagaço, deitou-se outra vez e adormeceu.
Na manhã seguinte, nada, não me disse mais nada.

E eu, naturalmente, não lhe disse nada da conversa do sonho da noite anterior.... Aquilo eram os nervos pensei. 

São momentos de fraqueza, todos os homens passam por isso. Todos passamos por isso.

Não é preciso estarmos sempre a lembrar-nos.

Chegamos a Bissau, lá tivemos umas duas semanas e depois fomos para o mato.

Nunca mais se falou na primeira noite do Kuanza nem do sonho.

O Talochas falava sim senhor, que quando voltasse ia casar com a Alzira, que quando chegasse fazia e acontecia, que queria ir com a Alzira para a Alemanha.... Enfim, pronto, fazia planos como todos os outros.

Um dia, isto já depois de estarmos há meses no mato, saímos para ir acompanhar um abastecimento. No regresso, tivemos um percalço, saltou o eixo de direção do camião da frente e a noite apanhou-nos na estrada. Vínhamos em quatro camiões desses grandes, mais dois jipes um a frente e outro atrás. Aquela até era uma zona calma.

Havia ali a uns trezentos metros do sítio onde saltou o eixo, uma venda de um português, acho que o gajo era do Minho, de Valença do Minho ou de Melgaço. Lá atamancamos a coisa, e com cabos rebocamos o camião até perto da venda. O Sargento mandou-nos estabelecer o perímetro. Era uma casa quadrada de paredes de tijolo e teto de zinco, mas as paredes todas pitadinhas de branco e porta também pintadinha, uma coisa que até era asseada e dava gosto de ver ali no meio do mato... O sargento pôs-nos dois de sentinela, um à frente e outro atrás da casa. O meu grupo ficou com a frente da casa. Eu fiz das seis da tarde às dez da noite, depois um moço que é até ali do Seixal, fez das dez da noite às duas da manha, das duas as seis fez o Madeirense e o Talochas ia fazer das seis da manha às dez da manha... Assim foi.

Eu tenho isto que acordo sempre cedo, antes do sol nascer, sempre tive.... Estávamos todos la dentro da venda, eu acordo, ainda escuro deviam ser umas seis e meia e venho cá fora mandar uma mija. Está o Talochas de sentinela, chego-me assim ao pé dele e ficamos a falar, até lhe estava a pedir dois escudos emprestados para comprar uma broa de milho que o homem da venda tinha broas boas e queria levar para o quartel e não tinha levado a carteira.

Nisto da mata em frente, arredado aí uns duzentos metros, como daqui até aquele poste ali, abriram fogo contra nós. Eu atirei-me pro chão, mas o Talochas não teve tempo coitadito, a bala entrou-lhe aqui mesmo pela testa e sai-lhe por trás da cabeça. Ficaram-lhe os miolos todos espalhados pela parede caiada.

Ainda no chão, olho para o relógio e eram precisamente seis horas e quarenta minutos!

Isto é a mais pura das verdades.

1 comentário:

  1. O tema toca a todos. A guerra do ultramar não se esquece e a tua escrita também não. Bjinhos

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