Quem é que nunca pensou na morte, na sua própria morte? Confesso que já pensei muitas vezes, mas era uma morte onde ficava como espectadora, observando o que acontecia à volta do meu cadáver. Uma morte em que podia imaginar as reacções e sentimentos daqueles que me rodeavam. Ou então era uma morte de vingança, depois de alguma contrariedade, uma forma de dizer: Ora então, faço falta ou não? Mas era, sobretudo, uma morte da qual regressava sempre se não conseguisse suportar a dor dos que amo devido à minha ausência. Era uma não -morte.
Mas quando ela chega e se aproxima, de verdade, é algo bem diferente. Vou falar-vos da minha quase morte, que a dos outros sei senti-la de outra forma.
Quando dei entrada naquele enorme hospital, sentia que algo não estava bem, mas como sempre fazia quando algo me assustava, deixei-me ficar do lado de fora, observando. Imaginava que aquela que era transportada numa maca através dos corredores do hospital, era outra, não eu.
No entanto era eu que via passar as luzes do tecto sucessivamente, era eu quem via rostos desconhecidos debruçarem-se sobre mim. Fui eu quem viu a cara preocupada do meu patrão -foi ele que me levou para o hospital. Era médico psiquiatra- deteve o maqueiro por uns segundos, e vendo o seu ar preocupado perguntei: estou assim tão mal, Dr.? – Ele respondeu perguntando: - quer que chame os seus filhos? - Não! Eu falo com eles depois! Imagina! Assustar assim as crianças! Ainda se metem à estrada, nervosos, podem ter um acidente! Não.
A correria na maca através dos corredores fazia-me sentir um personagem das séries de televisão. Sentia-me como uma criança quando faz uma ferida, ou parte um braço, e exibe orgulhosamente o seu dói-dói.
Na sala de reanimação esperavam-me três médicos e outras tantas enfermeiras, ao menos foi isso o que pude ver. Transferiram-me rapidamente para uma cama rodeada de uma parafernália de monitores e holofotes que me cegavam. Então sim, senti-me uma estrela! Olhei para o meu vizinho de quarto, um homem de meia idade estendido numa cama igual à minha e senti pena. Coitado, devia estar bem mal…
Os médicos atiraram-se a mim furiosamente, devassaram as minhas mãos, os meus braços, à procura das minhas veias. Consegui reconhecer o sotaque brasileiro de um deles, o que estava sempre encima de mim era russo - vi o nome na placa que trazia colada à bata - alto, loiro, jeitoso embora anafado, muito simpático e atento. Perguntei-lhe se eu estava no Serviço de Urgência ou na Anatomia de Grey, mas ela não deu resposta. O outro era português e muito sisudo. Não lhe liguei patavina. Estava lúcida, julgava eu.
Vi de relance uma senhora com expressão aborrecida e um homem, assistentes hospitalares, que arrancavam as minhas roupas. Toda a minha roupa. Desatei a rir à gargalhada. Ora bolas, sempre sonhei ser despida por um moço espadaúdo…, mas não desta maneira!
Vestiram-me uma bata que não tapava nada e quando me enfiaram uma fralda não gostei, foi degradante. Até porque a fralda era pequena e não ficou bem fechada e eu tinha uma vontade enorme de fazer chichi, tanta que não consegui controlar. Sentia-me nadar numa poça morna. Alguém disse: não se preocupe, não se preocupe…- Era a enfermeira que segurava carinhosamente a minha mão, a mesma que pouco antes tinha dito: ainda bem que ela tem vontade de rir. Quis perguntar-lhe se realmente a coisa era séria, mas da minha garganta saiu um som rouco, ininteligível, um urro animal. Então sim, nesse momento pensei que ia morrer. Contudo, não senti medo, apenas senti uma grande curiosidade. Dizem que atravessamos um túnel de luz…. Julgo ter visto um personagem estranho, encostado ao marco da porta, que me olhava com um sorriso sardónico.
- Maria, vai sentir uma dor forte no peito, mas não se assuste, é só um momento, uma dor boa que fará o coração voltar ao ritmo normal – Disse o médico russo.
Injectaram-me uma dose, mas não senti dor nenhuma. Ouve uma grande azáfama, movimentação, correria – rápido! 12cc, 12cc já! - Desta vez o meu peito parecia explodir e, pouco a pouco, o coração voltou ao ritmo normal. Fiquei algo decepcionada, afinal, não era desta que ia saber o que havia do lado de lá…
Durante as horas que fiquei em observação, tive tempo para reflectir. Dei-me conta de que a passagem da vida para a morte é muito fácil. Em realidade não custa nada, é bem mais fácil do que nascer.
Ao dar-me a alta o médico brasileiro me informou que teria que tomar, todos os dias, religiosamente, um comprimidinho, ou o coração entrava em curto-circuito. (Afinal, o meu problema é eléctrico!) E é essa dependência a que me mata!
Dez anos depois o episódio repetia-se, reconheci os sintomas, mas desta vez, antes da chegada da ambulância, tive tempo e presença de espírito para vestir a minha lingerie mais sexy. Mais vale a morte do que a injúria!
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