Mini comida de plástico, num mini prato de
plástico, comidas com mini talheres de plástico e digeridas num mini assento de
espuma plastificada. O som do motor abafado pelo zumbido do ar condicionado. Os
pés apertados e inchados na ponta das pernas encolhidas.
A grande noite atlântica. Horas intermináveis
de noite. Horas e horas intermináveis de atlântico. Horas depois de sucessivos
adormeceres e acordares incomodados, o amanhecer lento de quem viaja com o sol
por trás. Chegou um mini pequeno-almoço de plástico e lá ao fundo, pela mini
janela, o vulto do continente debaixo das nuvens.
A primeira coisa que vi da América do Sul
foram os cumes nevados dos Andes. E gostei.
Depois foram mais umas duas ou três horas de
voo sobre montanhas amareladas com pontas brancas. Os planaltos desertos de
vegetação e de casas.
Por fim, anunciaram que estávamos a chegar.
Santiago lá estava como me tinham descrito.
Catorze horas depois de Madrid. Saímos a
precisar de ar e de chão na sola dos pés. Mas os deuses das viagens deram-nos
mais duas horas de uma interminável fila para controlo de passaportes.
Aprovada a entrada e após sucessivas
tentativas, cada vez mais desesperadas, de levantar pesos chilenos nas máquinas
de levantamento automático no aeroporto, através de um esquema de legalidade
duvidosa, depois de apurada negociação, foi possível “levantar dinheiro”
pagando uma percentagem numa loja que tinha sistema multibanco a funcionar.
Saímos para a rua com um táxi pré-negociado e
o papel da morada escrita. Estava sol e o ar seco. À volta do aeroporto, o
habitual das construções que nascem à volta dos aeroportos. Seguimos até à
cidade.
Avenidas largas e arborizadas. Transportes
públicos e gente jovem pelas ruas. Muitos jovens. A primeira sensação que tive
do Chile, é que é um país de gente jovem. Ficámos numa coisa tipo sandes mista
de pensão barata com residência de estudantes. Limpinho e no centro da cidade.
Seriam umas dez da manhã quando chegámos.
De banho tomado, saímos para conhecer a
cidade.
Comemos uma empanada cada um e decidimos ir
caminhar. Errado. Não tínhamos mais descanso do que as horas que cabeceámos no
avião. Caminhar ao sol não dá saúde. Sobretudo numa cidade que não se conhece e
onde as distâncias relativas são numa escala gigantesca. Demorámos duas horas a
ligar dois pontos que pareciam colados no mapa. Voltámos tontos e com
vertigens. Acordámos ao final da tarde. Saímos refeitos para as ruas cheias de
gente. Fui comprar um canivete que não pude levar no avião e me faz muita falta
para mil e uma coisas que seria fastidioso dizer-vos agora, mas que fico
desamparado sempre que não trago um no bolso. Andámos pelas ruas antigas entre
drogarias, funileiros e lojas de ferragens.
Depois, jantar. Passámos por várias esplanadas
a comer e a beber. Vinho, empanadas, frango frito e pisco souer. O café,
segundo a apreciação de quem gosta será fraquito. O vinho e o pisco, excelentes
e baratos.
Foi Santiago versão alegre. Ruas movimentadas
gente jovem animada. Chegámos já tarde à pensão, mas a festa também ali seguia
animada. No quintal criámos uma espécie de nações unidas versão latina. Um
mexicano, um peruano, uma venezuelana, uma chilena, uma colombiana, um
brasileiro, um português e uma portuguesa. Vinhos e cerveja, anedotas e canções
numa guitarra que apareceu. O vinho do porto fez sucesso.
A cama recebeu-nos generosa, mas o jet-leg
acordou-nos por volta das seis e meia da manhã. Todos dormiam. Procurámos o
pequeno almoço possível num frigorífico mais ou menos coletivo e saímos para a
rua na manhã luminosa.
“Queremos ir ao Museu dos Direitos Humanos e
da Memória.” - dissemos ao primeiro polícia que encontrámos. Recebemos umas
indicações formais e precisas e fomos.
Animados pela primeira manhã de um novo
continente, percorremos os dois ou três quarteirões em passo ligeiro. Chegámos
cedo. Fizemos tempo num jardim florido a ver as pessoas passarem, seguindo para
o trabalho e para a escola. Às nove horas entrámos no museu.
Então a coisa deu-se. A brutal puta da
realidade a bater-nos em cheio na cara, no peito e nas tripas. E ficou aquela
angústia contagiosa, aquela raiva impotente, aquela dor e aquele vazio que
nunca passam.
Cinquenta Mil mortos. Estavam ali os cinquenta
mil desaparecidos, torturados e assassinados pelo Pinochet de má memória. Todos
à nossa espera. Alinhados para nos cumprimentarem e nos mostrarem que a terra
da América é amassada com sangue e ossos. Os mortos deram-nos as suas
boas-vindas e fizeram-no à sua maneira. Brancos, pretos, mestiços e índios
mineiros, pastores, camponeses, jornalistas, operários, topógrafos,
ferroviários, comerciantes, tipógrafos, estudantes, músicos revolucionários de
barbas, adolescentes com calças à boca de sino, todos todos. Todos ali
alinhados.
Pode acontecer que a culpa seja apenas do
museu que está bem feito. Talvez demasiado bem-feito. Ou então somos nós que
somos demasiado sensíveis. Pode ser paranoia e frescura da nossa parte. Ou
então foram as emoções a caírem na fraqueza das noites pouco dormidas.
A história que eu conhecia dos livros, dos
documentários e dos testemunhos sobre o golpe e sobre o terror do 11 de
Setembro em Santiago, toda ali à minha frente. Tão real que se pode morder.
Tudo numa visita de uma hora. Toda a angústia, toda a esperança destruída,
todas as dores, todos os gritos, todos os prantos, toda a tortura está lá,
documentada.
Os sons. As imagens. As cartas das crianças
para os pais já assassinados na tortura a combinarem passeios nos parques. O
testemunho das estudantes violadas, dos sindicalistas queimados a maçarico, dos
professores assassinados.
Numa parede de três andares, milhares de
fotografias com o rosto das vítimas. Gente assassinada a olhar para nós através
das fotografias amareladas do passe, do casamento, da ficha policial ou do
folheto para as eleições do sindicato.
Os bilhetes de identidade manchados de sangue.
Os textos e manifestos fotocopiados amarrotados. As máquinas fotográficas
apreendidas e partidas. Os instrumentos de tortura. As roupas rasgadas. E, a
mostrar-nos tudo isto os mortos, os cinquenta mil mortos, os cinquenta mil
nomes.
Gente como nós. Gente como tu e como eu.
Saímos do museu desfeitos. Arrasados. Não
falámos durante uma hora. Não conseguimos olhar um para o outro. Menos ainda
para as pessoas com que nos cruzávamos. Em cada rosto de um mais velho que
víamos, a incógnita do posicionamento: e tu? Terás sido carrasco ou terás sido
vítima?
As paredes do La Moneda não respondem, por
isso pegámos nas mochilas e fugimos.
Fugimos literalmente de Santiago.
Uma pena.
Uma cidade que me caiu tão bem. Uma terra tão
bonita, aberta, jovem e luminosa...
Mas não foi possível fazer de maneira
diferente.
Só passado mais de um mês conseguimos falar um
com o outro sobre o que sentimos em Santiago.
Mas um destes dias voltaremos.
Voltarei a Santiago do Chile, para
cumprimentar os vivos, beber pelos mortos e resgatar a parte de mim que lá
ficou.
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