MBC - “Falar de crime também é uma maneira de historiar o país, além
de passar testemunhos de outras épocas, de outras índoles”.
Na medida em que poucas pessoas conheciam os casos descritos
no livro onde são retratados acontecimentos reais de assassinas, falsificadoras
e ladras portuguesas dos últimos três séculos gostávamos de saber o motivo pelo
qual achou importante escrever um livro sobre estas mulheres?
AN - Eu gosto de História, de jornalismo, da problemática feminina
e da criminologia. Na minha “missão” de repórter enviada ao passado, já
descrevi a vida de outras 177 mulheres, em seis livros intitulados Portuguesas
com História. Não eram criminosas, mas nem todas foram heroínas do seu
tempo. Muito diferentes são, porém, estas 23 mulheres, todavia, também com elas
quis dar a conhecer personalidades e vidas noutros tempos… é precisamente como
digo na introdução de Mulheres Fora da Lei, contar histórias de crime é
também fazer a História de um país. Em especial, porque tenho a preocupação de
fazer enquadramentos, de dar testemunhos das épocas descritas, de revelar
jornais. E retrato criminosas, como também agentes da justiça, políticas,
locais…. É bom saber de tudo, a censura é péssima a todos os níveis, muito mais
na aquisição do conhecimento. Por outro lado, o facto de as mulheres cometerem
menos crimes do que os homens não significa que não os pratiquem. Além disso, é
necessário recordar o passado para acautelar o futuro.
MBC - Na sua perspectiva o que levou estas mulheres a tornarem-se
criminosas? A época em que viviam? O contexto sócio cultural? Ou simplesmente
uma incapacidade de sentir empatia e amor?
AN - Não tenho certezas. No caso das assassinas de maridos, embora
não haja desculpa para o ato, parece-me que elas não viam outra saída para um
casamento doloroso (quando sujeitas a maus-tratos, o que era a “normalidade”)
ou para a falta de amor senão o livrarem-se dos maridos tirando-lhes a vida.
Não havia divórcio, a separação era um passo dificílimo para uma mulher e amores
fora do casamento só eram permitidos aos homens. Quanto às gatunas, a maioria
vivia na miséria, num meio miserável… exploradas por homens (uma boa parte),
portanto, quando a pobreza social é desta ordem as saídas para a sobrevivência
são escassas. Outras houve, claro, que gostavam do que faziam, ou seja, de se
dedicarem ao crime. É assim a história da existência humana, desde os
primórdios. Há casos e casos, mulheres e mulheres, homens e homens…
MBC - Quando fez a sua investigação encontrou certamente informação
escondida nos arquivos que consultou que não tenha colocado no livro, e que de
alguma forma possam ficar para uma continuação de Mulheres Fora da Lei?
AN - Sim, aliás, os casos retratados em Mulheres Fora da Lei
já saíram do meu arquivo, que é resultado de uma pesquisa mais alargada sobre
crime (e outros factos históricos) que faço há anos. Daí que tenha muitas mais
histórias na manga com personagens femininas e masculinas. Em breve, espero que
ainda este ano, irão surgir outras histórias deste já bem recheado meu arquivo.
MBC - Confesso-lhe que de todos os casos retratados no livro aqueles
que mais
me impressionaram foram o da Luísa de Jesus (assassina em série) e a
de Maria do Carmo (a filicida), talvez por se tratarem de casos envolvendo
bebés. Na sua opinião qual foi a reação das pessoas a estes dois casos em
particular.
AN - Os crimes de Luísa de Jesus, rapariga de 23 anos, impressionam
sempre. Não temos registo em Portugal de um crime deste calibre… ela foi
condenada por ter assassinado 28 crianças, bebés que ia buscar à roda dos
expostos de Coimbra, mas terá matado mais de 30… para ficar com os 600 réis, o berço e os 66 centímetros
de pano de lã felpudo que a Misericórdia dava às amas, por cada bebé que
levavam para criar ou para dar a outras famílias que dele cuidassem. Ninguém
fica indiferente a um caso como este, mesmo sabendo que tudo aconteceu num
tempo longínquo; são crimes cometidos a sangue frio, sem remorso. A Maria do
Carmo é diferente, no perfil, nas motivações… a única semelhança é a idades…
julgo que foi um ato de desespero matar o filho de um mês. Estamos a falar dos
últimos anos do século XIX, as mulheres não tinham direitos e as criadas de
servir muito menos. Quando, numa casa, havia um roubo, por exemplo, a criada
era a primeira a ser presa, mesmo que nada indicasse que fora ela. Se uma
mulher engravidava sem ser casada tratava-se de um atentado social, se fosse de
“boas famílias” ainda arranjava maneira de se livrar do estigma, mas sendo
criada… Maria do Carmo viera há pouso meses da província, onde um soldado lhe
prometera casamento para a namorar, contudo, quando ela engravidou nunca mais
ninguém o viu. Quando a barriga se começou a fazer notar, deixou a casa do
militar onde trabalhava, desesperada… Já no hospital, uma outra companheira de
enfermaria disse-lhe que abandonasse a criança numa escada, prática comum, ou
que a entregasse na misericórdia de Lisboa. Ali, embora percebessem que ela não
tinha condições para o criar, disseram-lhe que não podiam aceitar o bebé, por uma
questão burocrática: este tinha sido concebido em Pombal, portanto, fora do
concelho de Lisboa. Transtornada, sem saber o que fazer, foi da misericórdia ao
jardim do Campo Grande, a pé, com a criança nos braços; lá chegada, escolheu um
banco, junto ao lago, estrangulou o filho, e esteve horas a fio, sentada, com o
bebé morto nos braços, até anoitecer, até o pousar com cuidado no chão, num
local onde era visível... Falamos de uma altura em que o aborto é proibido,
extremamente perigoso e, por isso, pouco praticado. Quase todos os dias, surgem
nos jornais notícias sobre o aparecimento de um feto, uma suspeita de
infanticídio, uma criança abandonada. Maria do Carmo disse que lhe passou uma
nuvem pela cabeça… Qualquer destes casos, o de Luísa de Jesus e o do Maria do
Carmo, impressionam qualquer pessoa, julgo eu. Para mais, é tudo real, em
nenhuma das histórias que conto há ficção, mesmo quando digo que está a chover
ou a fazer sol.
MBC - Alguns leitores poderão pensar que os castigos eram muito
severos “cortadas e separadas as cabeças dos corpos já mortos e levadas e
postas no lugar do delito” ou até que alguns eram muito leves “oito anos de
prisão celular, seguida de doze anos de degredo”, tendo esta assassina ainda
vivido até aos 86 anos. Se lhe pedisse a sua opinião sobre os castigos em geral
qual seria a sua resposta.
AN - Eu sou contra a pena de morte, portanto, até me custa pensar
que além desse castigo, os juízes ainda sentenciassem, por exemplo, que as
cabeças dos criminosos e criminosas fossem penduradas no local do crime… uma
imagem que nunca pensei poder associar à História de Portugal. Também não me
parece que as penas de prisão fossem leves… basta pensarmos como eram horríveis
as condições das cadeias e a dureza da vida em áfrica, no entanto, eram assim os
castigos no passado, em épocas em que me parece que até a justiça era pouco
recomendável. Veja-se o caso de Isabel Clesse que foi acusada de tentativa de
homicídio, o que a livraria da forca, mas como tinha um amante, como “vivia
publica e escandalosamente amancebada”, coisa imperdoável a uma mulher, foi
condenada à morte e enforcada. Ao apreciarmos sentenças dos séculos passados
nota-se o procedimento discricionário…
atualmente, também há razões para queixas, mas estamos muito melhores. Apesar
de tudo, o país está muito melhor, o mundo está muito melhor.
MBC - Pensa mesmo que “só o facto de já estarem todas enterradas no
passado nos deixa alguma tranquilidade”?
AN - Bem, é uma forma de dizer que as criminosas retratadas já não
andam por aí, já não podem fazer mal a ninguém. Por isso mesmo, digo alguma
tranquilidade. Só alguma, porque o crime, independentemente da altura em que é
praticado, seja no passado ou no presente, é algo que incomoda. Há por aí
muitas substitutas… Uma sociedade sem crime não existe, infelizmente foi assim
ontem é assim hoje, todavia, temos sempre a ilusão de que o conseguiremos
erradicar combatendo-o, e ainda bem que temos essa esperança.
MBC - Se escrevesse uma continuação de Mulheres Fora da Lei já neste
século pensa que poderia encontrar casos semelhantes, com os mesmos contornos
ou as mulheres deste século serão mais “hábeis” nas suas fazes mais negras?
AN - As mulheres continuam a cometer menos crimes do que os homens,
no entanto muitas continuam a fazê-lo. Mulheres que assassinam, que roubam, que
vigarizam, chantageiam… continuam a existir, algumas com outros requintes,
praticando o crime de forma mais refinada. E até em maior número… é o preço que
se paga pelo ganho de maior liberdade de movimentos, pela emancipação de um
sexo continuamente subjugado, mesmo quando se fala em crime.
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