quinta-feira, 5 de setembro de 2019

NOCTURNO ARCO-ÍRIS: JOÃO SEM MEDO, de Helder Menor















Freguesia de Estreito, concelho de Oleiros, distrito de Castelo Branco. Início dos anos sessenta do século XX.

Enquanto os gigantes do mundo corriam juntos para conquistar o espaço, na fundura mais funda e baixa da mais baixa Beira-Baixa, os sobreviventes à miséria endêmica corriam a fugir à pobreza e para chegar a horas à missa.

O João Sapateiro, como era chamado, solitário homem de cinquenta anos, viúvo, construtor de botas e tamancos e sapateiro das feiras itinerantes das redondezas, afogava a solidão dos seus dias em vinho tinto. Religiosamente, todas as noites, as de inverno incluídas, saía da sua casa depois de jantar umas sopas de couves e ao sol-pôr, percorria a pé, por caminhos de cabras entre matos, lobos e assombrações, os três quilómetros que o separavam da tasca mais próxima numa aldeia vizinha. Depois voltava noite fechada, iluminado pelas estrelas ou pela lua, se fosse caso disso.

Tal hábito das saídas noturnas, associado à recusa de entrar nas igrejas, mais a rebelde e rara capacidade de saber ler, causava na vizinhança uma certa suspeita, incómodo e até mal-estar.

Perguntavam-lhe:

- Ó João, tu não tens medo de andar aí por esses caminhos noite cerrada. Com lobos e assombrações que penam por esses ermos?

De poucas palavras, o João Sapateiro, encolhia os ombros, acendia a pederneira com que dava lume ao seu cigarro de onça e seguia caminho sem dar resposta.

As saídas do João, e as suas ausências na missa, foram-se tornando uma afronta para a comunidade.

O padre do Estreito recém colocado, ainda jovem e cheio de ideias, planeou uma ação de marketing agressivo para trazer para o redil da sua igreja a alma tresmalhada do sapateiro.

Uma noite de novembro, um grupo de corajosos habitantes, coordenados pelo padre, juntaram-se para assustar o sapateiro. Queiram dar-lhe uma lição em forma de susto.

Junto a uns pedregulhos imensos que ladeavam o caminho juntaram-se os aldeões, com eles traziam uma moça que era irmã de um deles, reinadia e afoita que se disponibilizou a participar na encenação.

Com um lençol por cima da cabeça e uma vela acesa na mão, a jovem pálida maquilhada com farinha, esperava o sapateiro na curva do caminho. Junto às fragas estavam escondidos os cúmplices e com o padre.

Quando o João Sapateiro se foi chegando, na noite escura ouviu-se o coro de gemidos que despertaram o caminhante dos seus pensamentos e uns metros à frente a imagem fantasmagórica da jovem tapada com o lençol e com a vela na mão.

O João parou a uns três metros da aparição. Ficou calado a olhar, enquanto a jovem lamurienta dizia:

- Ajuda-me João... manda rezar uma missa pela minha alma... ajuda-me que estou a penar...

O João, pensativo, ouvia e enrolava o seu cigarro.

Devagar aproximou-se.

A alma penada prosseguia:

- Ajuda-me João, manda rezar uma missa João, vai à missa João, vai à missa para salvar a minha e a tua alma...

Foi então que o João falou.
- Amiga alminha, quando precisares que te remende os tamancos que trazes calçados, vem pedir-me ajuda que fui eu que fiz esses e posso fazer-te outros.

Em relação à missa, vais ter de ir pedir ajuda ao padre do Estreito que cada um tem o seu ofício e o meu é sapateiro..., mas já agora, ajuda-me tu a mim que tenho a pederneira molhada...

E foi sem hesitar, que o sapateiro aproximou a ponta do cigarro da vela acesa onde tirou o lume que precisava. Depois fez uma vénia com o chapéu, disse boa noite e seguiu ligeiro a fumar pelo caminho estreito que o levou até casa.

Sem que o João falasse no assunto a quem quer que fosse, a história propagou-se como um incêndio naquelas encostas de pinhais e aldeias perdidas.

O João Sapateiro, passou a ser conhecido como João Sem-Medo. Morreu no final dos anos oitenta de pneumonia e solidão. Alguns dos seus tamancos ainda hoje pisam os caminhos nos passos incertos das raras, mas resistentes velhinhas beirãs.

A rapariga, que passou a ser chamada de Alma-Penada, seguiu o concelho do sapateiro e foi pedir ajuda ao jovem padre. O padre ajudou-a. Constituíram família, tiveram três filhas e foram viver para Vila do Conde onde o ex-padre foi professor e onde ainda hoje vive a divertir e a assustar os bisnetos com histórias de lobos e assombrações.


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