Freguesia de Estreito, concelho de
Oleiros, distrito de Castelo Branco. Início dos anos sessenta do século XX.
Enquanto os gigantes do mundo
corriam juntos para conquistar o espaço, na fundura mais funda e baixa da mais
baixa Beira-Baixa, os sobreviventes à miséria endêmica corriam a fugir à
pobreza e para chegar a horas à missa.
O João Sapateiro, como era chamado,
solitário homem de cinquenta anos, viúvo, construtor de botas e tamancos e
sapateiro das feiras itinerantes das redondezas, afogava a solidão dos seus
dias em vinho tinto. Religiosamente, todas as noites, as de inverno incluídas,
saía da sua casa depois de jantar umas sopas de couves e ao sol-pôr, percorria
a pé, por caminhos de cabras entre matos, lobos e assombrações, os três quilómetros
que o separavam da tasca mais próxima numa aldeia vizinha. Depois voltava noite
fechada, iluminado pelas estrelas ou pela lua, se fosse caso disso.
Tal hábito das saídas noturnas,
associado à recusa de entrar nas igrejas, mais a rebelde e rara capacidade de
saber ler, causava na vizinhança uma certa suspeita, incómodo e até mal-estar.
Perguntavam-lhe:
- Ó João, tu não tens medo de andar
aí por esses caminhos noite cerrada. Com lobos e assombrações que penam por
esses ermos?
De poucas palavras, o João
Sapateiro, encolhia os ombros, acendia a pederneira com que dava lume ao seu
cigarro de onça e seguia caminho sem dar resposta.
As saídas do João, e as suas
ausências na missa, foram-se tornando uma afronta para a comunidade.
O padre do Estreito recém colocado,
ainda jovem e cheio de ideias, planeou uma ação de marketing agressivo para
trazer para o redil da sua igreja a alma tresmalhada do sapateiro.
Uma noite de novembro, um grupo de
corajosos habitantes, coordenados pelo padre, juntaram-se para assustar o
sapateiro. Queiram dar-lhe uma lição em forma de susto.
Junto a uns pedregulhos imensos que
ladeavam o caminho juntaram-se os aldeões, com eles traziam uma moça que era
irmã de um deles, reinadia e afoita que se disponibilizou a participar na
encenação.
Com um lençol por cima da cabeça e
uma vela acesa na mão, a jovem pálida maquilhada com farinha, esperava o
sapateiro na curva do caminho. Junto às fragas estavam escondidos os cúmplices
e com o padre.
Quando o João Sapateiro se foi
chegando, na noite escura ouviu-se o coro de gemidos que despertaram o
caminhante dos seus pensamentos e uns metros à frente a imagem fantasmagórica
da jovem tapada com o lençol e com a vela na mão.
O João parou a uns três metros da
aparição. Ficou calado a olhar, enquanto a jovem lamurienta dizia:
- Ajuda-me João... manda rezar uma
missa pela minha alma... ajuda-me que estou a penar...
O João, pensativo, ouvia e enrolava
o seu cigarro.
Devagar aproximou-se.
A alma penada prosseguia:
- Ajuda-me João, manda rezar uma
missa João, vai à missa João, vai à missa para salvar a minha e a tua alma...
Foi então que o João falou.
- Amiga alminha, quando precisares
que te remende os tamancos que trazes calçados, vem pedir-me ajuda que fui eu
que fiz esses e posso fazer-te outros.
Em relação à missa, vais ter de ir
pedir ajuda ao padre do Estreito que cada um tem o seu ofício e o meu é
sapateiro..., mas já agora, ajuda-me tu a mim que tenho a pederneira molhada...
E foi sem hesitar, que o sapateiro
aproximou a ponta do cigarro da vela acesa onde tirou o lume que precisava.
Depois fez uma vénia com o chapéu, disse boa noite e seguiu ligeiro a fumar
pelo caminho estreito que o levou até casa.
Sem que o João falasse no assunto a
quem quer que fosse, a história propagou-se como um incêndio naquelas encostas
de pinhais e aldeias perdidas.
O João Sapateiro, passou a ser
conhecido como João Sem-Medo. Morreu no final dos anos oitenta de pneumonia e
solidão. Alguns dos seus tamancos ainda hoje pisam os caminhos nos passos
incertos das raras, mas resistentes velhinhas beirãs.
A rapariga, que passou a ser chamada
de Alma-Penada, seguiu o concelho do sapateiro e foi pedir ajuda ao jovem
padre. O padre ajudou-a. Constituíram família, tiveram três filhas e foram
viver para Vila do Conde onde o ex-padre foi professor e onde ainda hoje vive a
divertir e a assustar os bisnetos com histórias de lobos e assombrações.
Chapelada, boa estória.
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