Para ela, os primeiros
dias eram sempre iguais. Era sempre a mesma sensação de pertencer a outro lado.
O primeiro dia e os seguintes, ou melhor as primeiras duas semanas, eram para
ela sempre uma confusão.
Estava na secundária
da Quarteira e seguia direita à sala de professores que era no primeiro andar
da C+S de Valongo.
Quando foi colocada
aqui não lhe pareceu diferente. Uma antiga escola industrial construída durante
o estado novo, com remodelações periódicas em função do calendário eleitoral.
Por duas ou três vezes, virou à esquerda, percorreu o corredor até ao fim e
teve de voltar para trás, porque não tinha saída e as escadas ao fundo do
corredor eram na última escola onde esteve colocada.
Foi por isso que não
ligou às contas quando percebeu que tinha um aluno a mais na sala ou a menos no
livro de ponto. Vinte e oito alunos no livro e vinte e nove cabeças que ela
contou.
Sempre uma confusão.
Fez aquela primeira
chamada e todos responderam. Ou quase todos, que nos primeiros dias há sempre
alunos recolocados e também eles deslocados.
Andam sempre todos
deslocados. Apenas as contínuas, meia dúzia de professores do quadro e os
repetentes crónicos parecem devidamente arrumados e parte da mobília.
Foi logo no primeiro
dia dela naquela escola, que reparou nele.
Ela veio para dar
biologia aos nonos, décimos e décimos-primeiros. Ele apareceu-lhe na aula do décimo,
com roupas meio datadas dos anos oitenta e, ao contrário dos outros alunos, na
mão não trazia um telemóvel mas sim uma bola de basquete. Entrou pálido a
cochear do pé direito, afastou a cadeira para se sentar na última fila
encostado à janela e soprou o tédio crónico dos dezasseis anos do lábio de
baixo diretamente para a franja. Acompanhou o sopro com um inclinar da cabeça
para trás e manteve-se ausente enquanto ela explicava o funcionamento das aulas
e tentava aferir a dimensão da ignorância dos alunos.
Nesse dia não o voltou
a ver.
Nem no dia seguinte.
As contas dos alunos
no livro de ponto foram-se acertando e os pés dela foram aprendendo o mapa do
lugar.
Depois voltou vê-lo.
Trazia a mesma roupa. E a bola de basquete a bater no chão e a subir para a
palma da mão como um animal amestrado. Seguia a cochear na direção de um jardim
com árvores numa espécie de pátio interior.
Cruzaram-se num
corredor infinito com portas que dão para salas de aula dos dois lados. Ela
ainda abriu a boca para lhe perguntar porque é que ele tinha faltado à aula
dela... mas como ele não fez intenção de a saudar, ela fingiu que não o viu e
ficou a ouvi-lo a afastar-se com o seu passo descalibrado ao ritmo das batidas
da bola no chão.
Já na segunda semana,
seria uma quarta, ela chegou cedo à escola e foi para a sala onde daria a
primeira aula organizar as revisões. Ele já estava na sala, sentado ao fundo,
encostado à janela e olhando para o jardim, ausente. Ainda não eram sete e
meia.
Calado e pálido não
lhe respondeu ao bom-dia.
Ela foi ter com ele e
confrontou-o.
- Para já bom-dia,
depois, não são horas para estares na sala, terceiro isto não é um armazém de
equipamentos desportivos mas sim uma sala de biologia e, finalmente, para onde
estás a olhar tão distraído que nem me viste chegar?
Com uma voz cansada,
respondeu.
- Estou a ver o campo
de basquete.
- E onde é que estás
a ver o campo de basquete? Eu só vejo flores e árvores...Vais jogar? Estás
melhor do pé, reparei que cocheavas. O que te aconteceu ao pé?
- Foi uma entorse. A
disputar um ressalto, caí mal, fiz uma entorse no pé direito e um traumatismo
craneano que me matou.
- Que quê???
Uma contínua velha e
pequenina entrou na sala de aula. Também ela sem dizer bom-dia.
- A professora também
o consegue ver, não é?
A professora de
biologia virou-se para a funcionária e, por instantes, esqueceu a estranheza da
resposta do adolescente.
- Ver quem?
- O Jordan, o miúdo
que anda com a bola de basquete...
Ela ia responder que não
estava a entender a conversa, mas foi nesse preciso momento que o adolescente
com que tinha estado a falar se desvaneceu através da parede na direção do
jardim.
A professora ficou lívida.
A contínua continuou.
- Foi logo no
primeiro ou segundo ano que vim para esta escola. Em 87 ou 88... há mais de
trinta anos. Foi uma tragédia. O miúdo, acho, que era o Zé Manel, mas todos o chamavam
de Jordan, caiu no campo de basquete e morreu logo. Falou-se de droga e tudo,
veio nos jornais, mas não foi nada disso, o miúdo era um atleta. Foi um
acidente. Um horrível acidente. O diretor depois no ano seguinte mandou fazer
obras e o campo de basquete mudou-se lá para baixo. Antigamente era ali mesmo
onde está aquele jardim e aquelas árvores. A professora consegue vê-lo,
consegue ver o miúdo, não é?
Sem saber o que
responder, nem fórmulas, nem cálculos, nem experiências, nem roldanas
disponíveis para resolver o problema, a professora calou-se evasiva.
-Não sei do que está
a falar, mas deve ter sido uma tragédia.
A funcionária não
pressionou mais:
- Não se preocupe professora,
se viu, vai deixar de ver. E também lhe digo que vai ficar aqui no quadro desta
escola, porque ele só se mostra a quem vem para ficar.
...
A funcionária de ação
educativa tinha razão.
A professora de
biologia passou ao quadro. Está agora vinculanda naquela escola. Com o tempo
deixou de estranhar o edifício e os primeiros dias passaram a ser só mais um
primeiro dia. Já se habituou às rotinas do local. Sempre que as suas aulas se
tornam cinzentas ou quando o tempo convida, manda os alunos irem recolher
formas simples de vida junto às árvores do lado de lá da janela.
Avisa-os:
- Aproveitem a vida
que, como podem constatar, é um sistema de grande fragilidade!
Eles saem todos de
rompante sem entender pêva de biologia.
Ela então senta-se e
fica a ver dasabrochar das paixões entre os alunos, os beijos, os pássaros e os
insectos. Às vezes, ouve o soar de uma bola de basquete a bater na parede, um
bater ritmado que sabe que mais ninguém ouve mas que a conforta.
Sem comentários:
Enviar um comentário